Na primeira reportagem desta série, que você confere aqui, o Mescla mostrou que a Semana de Arte Moderna de 1922, evento que marcou o começo do Modernismo no Brasil, deixou um importante legado ao longo dos anos – a possibilidade de fazer cultura com uma “perspectiva de brasilidade”. O texto revisitou esse acontecimento para enxergar novos ângulos de reflexão. Agora, a segunda matéria vai avançar e discutir o evento do ponto de vista das mulheres. Apesar de ser um movimento inovador, foram poucas as que ficaram marcadas como artistas modernistas. A reportagem debate ainda como o machismo estrutural ocultou esses nomes na historiografia.
Ausências de gênero
O Brasil é composto majoritariamente por mulheres e negros. Com esses dados em mãos, é preciso voltar ao passado e vasculhar o baú dessa história ora dolorosa, ora maravilhosa. O que queremos propor para a área da produção de sentidos é o reencontro com o autêntico e o singular, mas tornando visíveis as ausências de gênero e raça no que ficou conhecido como a Semana de Arte Moderna de 1922.
“O que resta às mulheres? Tu fica no meio, em um espaço dissidente. É o que acontece quando a gente vai estudar o Modernismo por outras vias, que são Modernismos díspares, como eu falo. Eles acontecem no mesmo período, só que de forma totalmente diferente, sob outras perspectivas, sobre outras vivências, e que a gente desconhece, porque quem escreveu sobre isso normalmente foram homens”, verifica Thiane Nunes, doutora em História, Teoria e Crítica de Arte pelo Instituto de Artes da UFRGS.
Thiane produziu a tese “Misoginia modernista e a invisibilidade da mulher artista: resgate, legado e repercussões contemporâneas”, em que investiga, com ênfase, a história de 23 artistas mulheres, em contexto mundial, que acabaram sendo esquecidas (ou pouco lembradas) no fluxo da história. “Isso se deve não só aos artistas ou companheiros – ou pessoas que conviviam –, mas, pelo que eu constatei na pesquisa, se deve muito à historiografia, a quem deixou de escrever sobre. Foram escolhas conscientes em deixar algumas pessoas de lado. E, normalmente, quem escreve a história que a gente conhece são os homens”, sentencia.
Perguntei para ela se é possível reescrever a história. Segundo Thiane, não é possível, mas podemos contar e refletir sobre as partes que faltam. “Não é só uma recuperação, como é um remodelamento, digamos assim, do Modernismo. Eu não estou exatamente recuperando, mas mostrando que ele é muito mais polivocal, muito mais rico, inclusive, e ele pode aumentar nosso acervo cultural e de saber de uma forma muito mais gratificante se a gente notar o que ficou à margem desses escritos. Porque tem muita coisa a ser descoberta.”
A pesquisadora, inclusive, não utilizou referências bibliográficas masculinas, não para ignorar o trabalho já realizado por este gênero, mas para mostrar a riqueza e quantidade de livros, teses, artigos, enfim, escritos pelo feminino.
Casamento da novidade com o Brasil
A professora do curso de Letras da Unisinos, Márcia Lopes Duarte, segue a linha de Thiane: “As mulheres modernistas eram mal vistas. Elas não seguiam o padrão que se esperava das mulheres naquele momento do Brasil. O Brasil tem uma cara conservadora, tem um núcleo na sociedade brasileira que tem essa coisa de manutenção ‘da família’”, pontua. “Essas mulheres que produziam, seja literatura, seja artes plásticas ou música, eram taxadas como aquelas que precisavam ficar de lado, não eram ‘bom exemplo’”.
No decorrer da conversa, perguntei para Márcia o que surge em sua mente quando ela pensa em Modernismo no Brasil. Para ela, são as obras de Tarsila do Amaral. “Eu acho que a Tarsila tem essa perspectiva. Ela casou essa coisa das vanguardas com o Brasil, o que não é uma coisa fácil, por causa dessa cara conservadora que o Brasil tem, e está muito entranhado. Então, a Tarsila trouxe essa coisa da novidade e botou o Brasil aí dentro.”
Múltiplas linguagens
“O movimento modernista foi absolutamente misógino. Ele tem algumas protagonistas – a Anita Malfatti, e Tarsila –, mas muito em função dos companheiros que elas tinham, da vida que elas levavam”, diz Rita Lenira de Freitas Bittencourt, professora de Literatura Comparada da UFRGS, que também cita o episódio em que Monteiro Lobato “detona” a arte de Anita. “E o Lobato, na época, era um escritor conhecido, era um editor, tinha uma editora, publicava muita gente. Esse evento acaba sendo um pouco paradigmático do que acontecia com as mulheres que queriam trabalhar com arte ou literatura.”
A pesquisadora Thiane concorda, e analisa que os nomes dessas mulheres estavam costurados, formando uma teia, e se encontrando de alguma forma. Pode ser coincidência, mas ao longo da apuração, conversei apenas com pesquisadoras ou professoras mulheres, e foi o nome da professora Rita que me levou ao de Thiane. Enquanto conversava com Rita, ela refletiu:
“Uma característica que eu acho que é bem relevante em relação às mulheres do Modernismo é que elas não se vinculam a apenas uma linguagem artística, elas acabam atravessando outras linguagens. Acho que isso é bem importante pensar. Como as grandes artes, a literatura tradicional, a poesia, eram um território masculino, desde o começo as mulheres vão entrando pelas bordas, fazendo outras coisas, experimentando outras linguagens. Isso dá até uma certa liberdade para elas. A Semana de Arte Moderna detonou a visibilidade das mulheres. Mais adiante, vai vir nessa esteira, de múltiplas linguagens, o próprio trabalho da Pagú”.
Para entender a história da Pagú, a Rita me apresentou a Thiane.
“Se tem alguma artista que ainda precisa ser lida, revisitada, estudada, é a Pagú. Porque as outras, a Tarsila e a Anita, bem ou mal já chegaram num lugar canônico.” Rita Lenira Bittencourt
Musa modernista?
Patrícia Rehder Galvão ficou muito mais conhecida pelas polêmicas do que pela multidisciplinaridade do seu trabalho artístico. Apelidada de Pagú, pelo poeta Raul Bopp – Thiane afirma que ela não gostava do apelido – era a jovem de 1922. Depois, descobrimos que ela adotou outros pseudônimos, como o de Mara Lobo, Solange Sohl, Peste, Cobra, Patsy, K.B. Luda. Muitas vezes, a imagem dela fica reduzida a de “musa”, de mulher ousada que usava batom escuro, fumava e bebia, aquela que virou amiga dos modernistas e acabou com o casamento de Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral.
Mas Patrícia Galvão foi tradutora, jornalista, romancista, poetisa, crítica de arte e de literatura, cartunista, desenhista, produtora de teatro e ativista política. Por sinal, Pagú, além de ser pioneira em diversos assuntos, foi uma das primeiras mulheres a se tornar presa por motivos políticos. Ela foi ao cárcere 23 vezes.
“Ela traduziu Ionesco, que é um teatro super vanguardista, ninguém nem conhecia no Brasil. Ela traduziu Kafka. Ela foi crítica de arte, de literatura, escreveu dois livros muito interessantes, que são opostos um do outro, inclusive. Um em 1932, depois em 1945, quando ela já era dissidente do PCB (Partido Comunista Brasileiro). Tu vê nuances bem diferentes do que ela já acreditava ali, já que ela virou uma dissidente, como várias mulheres acabaram virando”, explica a pesquisadora.
Para Thiane, Patrícia foi muito mais vanguardista do que muitos outros nomes masculinos conhecidos do período. “Nos dois romances, por exemplo, eles partem muito de diálogos, eles quase não tem adjetivos, quase não tem verbos, eles não tem descrição de paisagem. Então, tem todos alguns subtextos ali, que são formais, que são de estudos e pesquisas formalistas mesmo, da forma, de como fazer, só que, ao mesmo tempo, tem o contexto do engajamento. Isso que difere de muitos outros, que difere de um non sense dadá, por exemplo”, explica. Patrícia escreveu “Parque Industrial” e “A Famosa Revista”.
A estudiosa acrescenta detalhes na análise da obra literária de Patrícia: “Existe toda uma cadência, independente do roteiro, do contexto, que é feito ali, que é baseado totalmente no Manifesto Antropofágico, que segue as linhas e tudo mais. Então, é raro quem fez um romance engajado, romance mesmo, que não é só uma prosa, que não foi só poesia, e ainda utilizou do seus ‘parâmetros modernos’, as questões que tinham definido como tal. E, nesse sentido, é bem vanguardista, muito mais vanguardista que algumas outras literaturas.”
Pioneirismo nos quadrinhos
Patrícia publicou incontáveis cartuns e quadrinhos. Incontáveis mesmo. Estão separados em jornais, revistas e outros meios, além do que foi assinado com os seus diversos pseudônimos. Patrícia é uma das primeiras mulheres a se aventurar nesse tipo de arte, e a veia provocadora não poderia faltar ali. Na tirinha abaixo, que foi publicada em O Homem do Povo, jornal que produziu com Oswald de Andrade enquanto eram companheiros, podemos ver um deboche escrachado com a Igreja, e seu papel de “educadora sexual de crenças”.
O Caderno de Croquis de Pagú surge através de uma produção chamada de “Álbum de Pagú”, que não chegou a ser publicada em vida. “Tem uma parte, inclusive, na tese que eu escrevo, que eu não quis fazer uma comparação, de jeito nenhum, mas eu quis mostrar que pessoas faziam comparações, e que eu mostrei algumas linhas de desenhos da Tarsila e algumas linhas de desenhos da Pagú, que são similares ao extremo”, comenta Thiane.
“Colagem de meios”
Ao comentar os meios utilizados por Patrícia e a dificuldade que isso implica em encontrar materiais, Thiane explica: “Isso acaba se tornando quase parte de uma ‘arte efêmera’, que some, porque não está no museu, vira parte de uma coisa popular, de massa. Mas era parte de um projeto, de levar isso para todos, ‘levar para o povo’. Isso fazia parte do ideário de pensamento da Patrícia”.
Essa multidisciplinaridade é muito vanguardista. A professora Rita resgata: “Durante muito tempo, foi considerado uma coisa inferior, tipo ‘homem escreve romance, mulher escreve qualquer coisinha’ (crônica, conto), como se fossem artes menores. Esses espaços sobram para as mulheres. Elas conseguem trabalhar nesses buracos onde a literatura masculina não entra, e, por isso, também elas ficam à margem durante muito tempo.”
Thiane aponta que essas colagens de meios são totalmente vanguardistas, mas não teve a consideração necessária. “Porque foi feito por uma mulher. Se fosse por um homem, que, às vezes, perambulava por vários meios, ele era visto como ‘super multimídia’ (risos). Mas, se fosse por uma mulher, daí vinha o ‘ah, não, mas é que ela não era focada’. Sempre tinha uma desculpa”.
Além do mais, ela não se preocupava com autoria, com “egos”, como diz a pesquisadora. “Era mais uma sensação de compartilhamento, de querer. O ‘eu preciso fazer’ era importante pra ela. Era ‘eu preciso dizer isso, eu acredito nisso, não importa que seja eu que tenha dito, mas que alguém leia isso’. Era a verdade dela, independente se estava correto ou não. Não tinha essa ânsia em ser um gênio que assina sua obra embaixo”.
Para continuar
- Maria Lúcia Furlani – Pesquisadora. Ela mantém o site “Viva Pagú”. Já editou e publicou materiais sobre a Patrícia.
- “Pagú: Vida – Obra” – Biografia escrita pelo poeta concretista Augusto de Campos.