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Fotojornalismo como forma de registro histórico
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Em 1975, com apenas 19 anos, Elvira Alegre foi a única a registrar em fotos o velório e o enterro de Vladimir Herzog, jornalista morto pela ditadura militar. Quarenta anos depois, seu trabalho ainda serve como referência tendo um imenso valor histórico que inclusive comprova que a morte de Herzog não foi por suicídio, como alegava a polícia na época. Em início de carreira, Elvira trabalhava para o extinto jornal “Ex”, do Paraná, veículo que ia contra a ditadura.

Trabalhando para o Jornal Panorama, em Londrina, ela conheceu diversos repórteres paulistas e foi convidada por eles a atuar como fotojornalista no Ex, acompanhando a cobertura diretamente de São Paulo. “Antes de trabalhar no Panorama eles já desenvolviam o projeto no Ex em SP. Passado algum tempo, eles foram demitidos e em solidariedade, eu e Hamilton de Almeida Filho, com quem eu era casada na época, também pedimos demissão e partimos para São Paulo”, lembra Elvira.

Elvira Alegre mostra seus registros do velório e enterro de Herzog (Foto: Sérgio Renalli/FolhaPress)

A fotógrafa conta que antes de entrar para a carreira jornalística ela pretendia cursar Medicina e se preparava para o vestibular quando surgiu a oportunidade no Jornal Panorama. Desde então, ela nunca mais abandonou as câmeras. Um dos momentos mais marcantes de sua carreira ocorreu na madrugada de 25 para 26 de outubro de 1975, quando o telefone de sua casa tocou e veio a tão temida notícia: Vlado estava morto. “De forma não oficial, todos sabiam que Herzog não estava mais vivo mas faltava o pronunciamento oficial da polícia. Quando ele veio, a informação era que Vlado havia se suicidado, o que parecia muito improvável para todos nós”, lembra Elvira.

Vladimir Herzog, como preferia ser chamado Vlado, atuou como jornalista, dramaturgo e professor após se naturalizar brasileiro. Nascido na Iugoslávia, desde o início da ditadura militar no Brasil em 1964, ele lutou pela volta da democracia, sendo militante do Partido Comunista Brasileiro. Em 24 de outubro de 1975 ele foi chamado para prestar esclarecimentos no Exército, de onde não saiu com vida. A confirmação da sua morte veio no dia seguinte, quando um comunicado foi enviado para Brasília dizendo que o jornalista havia se suicidado. Tal alegação era muito comum na época da ditadura e era utilizada como forma de encobrir os assassinatos praticados pelo regime militar.

“Tinha um fato no meio desta história toda que não batia. Herzog era judeu, e os judeus que se suicidam são velados e enterrados em um local diferente dos que morrem por qualquer outra causa, e isso não ocorreu com o corpo de Vlado”, conta Elvira. Ela destaca ainda que por ter sido a única fotógrafa no local do velório e enterro do jornalista, seus registros são documentos que comprovam a mentira por parte da polícia.

Fotos da capela onde Vlado foi velado. Registo que comprova que ele foi assassinado (Foto: Elvira Alegre)

Elvira lembra ainda que quando ela e Hamilton foram avisados da morte de Vlado, ela levou consigo a câmera e saiu tirando fotos de tudo. Um de seus registros mais marcantes mostra Audálio Dantas, na época presidente do Sindicado dos Jornalistas de São Paulo, que, com as mãos na cabeça, passou 15 minutos em silêncio ao lado do caixão de Herzog. “Outra foto muito emblemática é da família de Vlado, mulher e filhos, bastante abalados durante o velório. Foi uma cerimônia muito tensa e triste”, conta a fotógrafa.

Audálio Dantas ao lado do caixão de Vlado (Foto: Elvira Alegre)

A profissional destaca também que apesar da pouca idade ela não tinha medo da ditadura, tanto que se arriscou ao fazer as fotografias. “Outro fato que me marcou muito foi a maneira como aconteceu velório e enterro de Herzog. Na época da ditadura, os mortos pelo regime eram enterrados na espreita já a despedida de Vlado foi sob os gritos da população. Para mim, aquilo era sinal de que uma reviravolta poderia acontecer e eu tinha tudo registrado”, conta.

Enterro de Vlado (Foto: Elvira Alegre)

O jornal Ex foi o único veículo de comunicação a noticiar a morte de Vladmir Herzog como assassinato. A matéria, porém, saiu sem fotos, na edição 16 do impresso, que viria a ser a última. “Todos os exemplares da edição 16 foram vendidos e fizemos uma impressão extra. Toda essa tiragem a mais foi apreendida pela repressão e a nossa equipe decidiu que era hora de encerrar as atividades, afinal não iríamos baixar a cabeça para o regime, mas também não dava mais para continuar tendo em vista as circunstâncias”, disse Elvira.

Elvira Alegre conta que suas imagens ficaram à disposição do jornal e acabaram sendo publicadas em grandes veículos posteriormente, como na Folha de São Paulo, por exemplo. Ela relata que ao abandonarem a redação do Ex levou consigo os negativos das imagens feitas no enterro e velório de Herzog. Dez anos depois, perto da data do assassinato, a Folha divulgou a foto de Audálio Dantas ao lado do caixão com uma legenda creditando a fotografia e dizendo que a imagem ficou inédita por uma década.

Para Elvira éum prazer contar a história de sua atuação no fato pois acredita que esta história não deve cair nunca no esquecimento. “Foi a partir da morte de Herzog que se iniciou uma abertura política, democrática e jornalística no país. E acho que foi por ter sido um momento tão marcante é que até hoje, 40 anos depois, ainda sou procurada constantemente para falar sobre o meu trabalho”, conclui Elvira. Ela ressalta ainda que nunca recebeu nenhuma quantia em dinheiro por essas fotos e que nem pretende, afinal o maior valor está na história que estas imagens carregam.

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