O 49º Festival de Cinema de Gramado ocorrerá entre os dias 13 e 21 de agosto, mas a lista de produções e artistas que estão concorrendo já foi liberada. Dentre os filmes que participarão da mostra competitiva, está o curta-metragem gaúcho “Era Uma Vez… Uma Princesa”, produzido por Lisiane Cohen, professora da Escola da Indústria Criativa da Unisinos. Além de produtora executiva, ela também encarou as funções de diretora, roteirista e atriz.
Uma história sobre amor e cura. O filme mostra o encontro entre as narrativas de Nina (Lisiane Cohen) e Carol (Laura Cohen), mãe e filha. Carol faz uma imersão nas memórias da mãe através de fotos e filmes caseiros, permitindo a ela uma nova aproximação com a vida de Nina.
O curta expressa o processo de cicatrização por meio da fala. “A psicanálise, desde Freud, diz que, para a gente começar a se curar, precisamos colocar em linguagem, falar sobre. E eu quis transpor a ideia de que essa linguagem poderia ser qualquer uma, inclusive a audiovisual”, aponta Lisiane, que é Pós-Graduada em Psicanálise, sobre um dos fatores que a influenciou na estruturação do filme.
“Era Uma Vez… Uma Princesa” foi gravado em dois dias por uma equipe de cinco pessoas, incluindo o elenco, para respeitar os protocolos sanitários devido à pandemia. Além de Lisiane Cohen, o filme contou com a participação de Carmem Fernandes na direção de arte, Fernanda Kern na assistência de fotografia e edição e Maurício Borges de Medeiros na direção de fotografia. Também podemos ver Laura Cohen, sobrinha de Lisiane, como atriz, o que, somado a outros fatores, transformou esse em um projeto “em família”.
Os bastidores de uma produção em família
Esse filme surgiu de uma abstinência, abstinência de set. Em janeiro deste ano, Lisiane estava desesperada para gravar alguma coisa e voltar a pôr a mão na massa. “Eu mandei uma mensagem para o Maurício falando: ‘Mau, eu preciso filmar!’, e ele estava com a mesma necessidade. Então, a gente combinou de fazer alguma coisa”, recorda, aos risos.
Inicialmente, o roteiro seria outro, mas, devido às limitações impostas pela Covid-19, o texto original seria inviável. Logo, uma das necessidades para essa produção se mostrou ser a capacidade de pensar algo adaptado à pandemia, para que poucas pessoas pudessem fazer. Com isso em mente, aditado ao desejo de gravar de uma vez, Lisiane começou a escrever um novo roteiro no sábado e o enviou para Maurício no domingo.
Esse roteiro acabou virando um processo de “se jogar nas próprias memórias”, como explica Lisiane, uma vez que ela utilizou de arquivos pessoais para integrar a narrativa como sendo recordações da própria Nina. Isso criou uma quebra da “quarta parede” – tela imaginária que separa o público das pessoas que estão assistindo – , em que esse processo ocorre simultaneamente de duas maneiras: com a Carol imergindo nas memórias de Nina e Lisiane visitando sua trajetória até aquele momento, análise da qual, segundo ela, saiu bem feliz com o que viu.
Para criar uma exposição crível, outros elementos da vida da roteirista precisaram ser adaptados à história, como, por exemplo, a estrutura familiar de dois irmãos mais velhos. Porém, o filme não cessa ali em pessoalidade. Na verdade, Lisiane vinha se dedicando apenas à escrita e direção, mas, nesse projeto, precisou conciliar essas funções com sua volta como atriz. O que a motivou a assumir esse papel foi, principalmente, às condições que cercavam a gravação, afinal, estando em meio à uma pandemia, ela não queria colocar ninguém em risco.
“Foi um negócio muito rápido. Eu não tive muito tempo para pensar e, talvez, se eu tivesse pensado, não teria me posto como atriz. Teria chamado alguém para fazer o papel de Nina. Mas eu acho que pelo filme ter esse lado autoral, de ser muito eu, muito o que eu penso, talvez não devesse ser outra pessoa a interpretar a personagem”, reflete Lisiane.
Carol, a outra personagem do curta, é interpretada por Laura Cohen. Esse envolvimento foi incentivado por vários motivos, como a pandemia, o contato frequente entre as duas – ambas sabiam dos cuidados que estavam tomando – e a semelhança física, já que viveriam os papéis de mãe e filha. “Eu queria algo intenso entre as nossas personagens, e eu e a Laura temos essa intensidade. Ela estava super afim de fazer e se entregou para o papel”, revela a intérprete de Nina.
A equipe por trás das câmeras já fez vários projetos juntos e, por consequência, conseguiram fluir em sintonia durante todas as etapas de produção. “O Maurício e a Carmem, por serem meus amigos há muito tempo, conhecem a Laura desde pequena. É bacana estar em família assim, porque a proposta do filme, de uma relação familiar, se tornava muito mais real”, comenta Lisiane.
Com uma equipe reduzida, todo mundo acabou fazendo um pouco de tudo. A diretora lembra que, inicialmente, essa parecia uma empreitada difícil, mas a realidade se mostrou muito mais simples. Segundo ela, a equipe se entendia rapidamente e, pela experiência na área, todos desenvolveram o pensamento rápido para solucionar qualquer imprevisto.
Em uma das cenas, na qual Laura está vendo algumas fotos no sofá, a diretora queria mostrar as tatuagens da atriz, uma no abdômen especificamente, mas nenhum dos figurinos disponíveis permitiam isso. “Eu disse: ‘Carmem, eu queria aquilo’. Então, ela pegou uma blusa e uma tesoura, e foi bem aquela coisa de desenho animado. Ela fez assim (gestos e barulhos de tesoura cortando o ar). Quando eu vi, estava lá o figurino para mostrar a tatuagem!”, conta Lisiane aos risos ao imitar a cena. Os acontecimentos engraçados que englobaram os dois dias de gravação foram muitos, de planos de câmera complicados que deram certo até um tingimento de cabelo que levou três dias para desaparecer completamente.
Por terem usado a produtora do Maurício como locação, com todos os materiais cênicos e de figurino pertencendo aos envolvidos, foi possível respeitar o tempo de cada um, sem apressar a produção. “Era aniversário da filha da Carmem no sábado, então, a gente gravou na sexta e no domingo. Nós nos demos ao luxo de ter esse momento respeitado”, exemplifica Lisiane. O resultado dessa colaboração é um filme que aborda um tema necessário de uma maneira contundente e sem exageros, fazendo com que muitas das pessoas que o assistem sentirem que aquela é uma realidade com a qual a roteirista tinha proximidade.
Violência contra a mulher
(pode implicar spoilers sobre o filme)
“Meu sonho é que a gente não precise mais falar sobre a violência contra a mulher e que as coisas mudem. Se lemos o jornal, vemos que é algo que se repete todo o dia”, lamenta Lisiane. No Brasil, a pandemia de Covid-19 foi um dos fatores que fizeram o cenário de agressões a mulheres se mostrar em uma crescente. Foram registrados 105.821 casos em 2020, o equivalente a 30% de todas as denúncias realizadas no Disque 100 e o Ligue 180. “Ao mesmo tempo, as pessoas não debatem muito sobre o que precisa ser debatido, dão muita atenção à violência física, e o debate vai além disso. Eu espero que o filme ajude nisso, gere esse debate”, acredita Lisiane.
A violência contra a mulher não se identifica como sendo somente física ou sexual. Na verdade, ela pode ser caracterizada como moral – submeter a mulher a xingamentos e humilhações –, psicológica – restringindo crenças ou ações – e patrimonial – controlando o dinheiro e documentos da mulher. A violência sexual tem um alcance amplo, e poucos sabem disso. Por exemplo, não ter autonomia para decidir sobre seus direitos sexuais e reprodutivos também é considerado violência sexual, essa sendo a condição de metade das mulheres em 57 países em desenvolvimento, de acordo com o Fundo de População das Nações Unidas.
Esse tipo de questão, que se tornou a mensagem principal do roteiro do filme, preocupa a cineasta há anos. “Um jornalista que eu adoro, Hélio Gama Filho, dizia que, certa vez, pediram para ele fazer um texto, e as pessoas amaram o que ele escreveu. Então, alguém perguntou quanto tempo ele tinha levado para concluir aquela escrita, e ele respondeu “40 anos”. Na real, a escrita é rápida, mas o amadurecimento e a introjeção da história, para ela sair, precisa de tempo”, contempla Lisiane. Idealista, a diretora acredita que podemos mudar o mundo, e o filme contribui ao incentivo de uma nova realidade, para que as mulheres possam ser o que quiserem.
Para contribuir com essa mudança, Lisiane planeja continuar trazendo essas temáticas para as telas. “Era Uma Vez… Uma Princesa” é o primeiro filme da série “Ninas”, que discute o protagonismo feminino em diversas abordagens, através de protagonistas chamadas Nina. Os próximos filmes da série ainda não têm data de lançamento. A intenção também está presente no palco da comédia com a série “As Supimpas”, uma parceria com a produtora baiana Layepas, que está em fase de captação de recursos. Ela irá abordar as convergências entre os temas de reinvenção na terceira idade e feminismo.
Indicações no Festival
Os filmes indicados serão exibidos no site do festival e na página do YouTube do Canal Brasil a partir do dia 13 de agosto. A premiação e entrega das estatuetas ocorrerá no dia 21 de agosto, com transmissão ao vivo nas mesmas plataformas.
O curta-metragem “Era Uma Vez… Uma Princesa” está concorrendo nas categorias “curta-metragem”, “roteiro”, “direção”, “produção executiva”, “direção de fotografia”, “montagem”, “direção de arte”, “música original”, “desenho de som” e “melhor atriz”, com indicação para Lisiane e Laura Cohen.
Essa não é a primeira vez que Lisiane Cohen foi indicada para o Festival. Sua primeira indicação foi no XVI prêmio, em que ganhou os Kikitos de melhor filme nas categorias “documentário” e “ficção” pelos filmes “Gota de Teatro” e “Acreditem!”, respectivamente. “Eu sei que o prêmio é bom e traz reconhecimento, mas, nesse caso, o que mais importa para mim é que o filme seja visto e que ele possa ajudar muitas mulheres. Para mim, isso é o que mais tem valor”, destaca.