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O que aprendemos com a greve dos caminhoneiros
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(Texto: Kellen Guaragni Dalbosco e Gabriel Aita Ost)

 

Nas redes sociais, a cena era de seriado apocalíptico. Mas, as estradas vazias não anunciavam o fim do mundo. Era uma greve no principal setor de transportes do país, que cruzou os braços durante dez dias. Empunhando bandeiras do Brasil, manifestantes fizeram uma série de reivindicações, entre elas, pedidos de intervenção militar no Estado e de socorro ao alto escalão do Exército Nacional.  

A greve ocorrida em maio passado provocou pane geral no governo, no país e na mídia, que viu seu trabalho questionado na mesma proporção que o movimento se estendia. Em 2013 e 2015, os caminhoneiros também se mobilizaram, mas, em 2018, pegou de surpresa uma imprensa desacreditada na força da categoria. Desse modo, o movimento demorou para ser percebido pelo jornalismo e, quando foi notado, foi apresentado a partir de suas consequências, e não das causas.  

No dia 16 de maio, cinco dias antes da paralização, em ofício enviado ao Palácio do Planalto, e revelado pela publicação online The Intercept, os caminhoneiros avisaram: “vamos parar o Brasil”. Encaminhado por entidades ligadas à categoria e endereçado a diversos ministros e ao próprio presidente da República, o documento encontrou as gavetas do congresso. No dia 21, sem respostas, de fato, eles pararam.  

 

Site The Intercept Brasil | Foto: Reprodução

 

Notificação do WhatsApp: uma greve silenciosa 

A greve teve um aliado poderoso e utilizado por mais de 120 milhões de brasileiros: o WhatsApp. O aplicativo foi crucial para a organização dos manifestantes que colecionavam grupos com lideranças, repassavam fotos e textos patriotas, áudios narrando as paralisações e mensagens de supostos militares anunciando uma intervenção militar iminente. Toda essa carga de informações, muitas vezes recheadas de notícias falsas, foi uma pedra no sapato dos jornalistas que cobriam o acontecimento.   

A doutoranda em Comunicação e professora de Jornalismo da Unisinos Luciana Kraemer questionou o fato do aplicativo ser capaz de, ao mesmo tempo, tornar acessível e omitir a informação de todos. “O WhatsApp nem é uma mídia que a gente possa monitorar, quer dizer, claro que pode, se tu tá recebendo. Mas, as mídias sociais, de notícia, que até então eram mais conhecidas como sendo de notícias, como o Facebook, o Instagram, o Twitter, eles ainda preveem um monitoramento, mas e o WhatsApp?”, indagou.

 

A imprensa também demorou para notar o que acontecia nos smartphones dos manifestantes. Noticiando o modo como os caminhoneiros estavam sorganizando, a primeira reportagem foi publicada dias depois do início da greve, o que, para Leandro Demori, editor executivo do The Intercept, foi um erro das redações. “É o mínimo alguém que vá nos pontos de greve e converse ‘como vocês se organizaram, como surgiu a ideia? Um negócio bem básico que deveria ter sido feito no primeiro dia, mas que de fato foram feitas lá no final”, comentou.

 

Sobraram perguntas, faltaram respostas

No dia 21, enquanto os caminhões começavam a parar pelas estradas, os jornais impressos do país não deram espaço para o movimento. A demora na reação da imprensa e a consequente cobertura do evento feita por ela geraram críticas nos mais diversos meios. A ombudsman da Folha de São Paulo disse que o jornal não conseguiu responder quem, de fato, parou o país. O jornalista gaúcho Carlos Wagner afirmou que a mídia forneceu aos leitores informações imprecisas, “justamente no momento em que ele precisava saber o que estava acontecendo para se organizar”, diz. 

Capas do Jornal Zero Hora nos dias 21, 22 e 23 de maio | Foto: Reprodução
Capas do Jornal O Globo nos dias 21, 22 e 23 de maio | Foto: Reprodução
Capas do Jornal Folha de São Paulo nos dias 21, 22 e 23 de maio | Foto: Reprodução

Quem acompanhava a greve de casa, via pela televisão três pontos principais de entradas ao vivo dos repórteres: postos e abastecedoras de combustível, supermercados e feiras e o Palácio do Planalto. Nos jornais impressos e internet, a lógica se repetia, assim como as informações e fontes utilizadas. 

“Quando acontece um negócio desses, no começo é muito difícil ter uma leitura exata do que fazer. Eu acho que a imprensa tem algumas horas desde o início de um evento traumático em que ela realmente precisa ajustar o foco, é algo normal”, opinou Demori. O The Intercept, veículo em que o jornalista atua, não trabalhou com a cobertura ponto a ponto da greve dos caminhoneiros. Ao contrário, optou por entender o impacto do acontecimento e, após, entrar com matérias de análises e, como no caso do ofício divulgado, informações exclusivas.  

Para Demori, a mídia ficou muito presa nos discursos oficiais e o que se viu foi uma cobertura voltada a falas e posicionamentos dos ministros e presidente. “Muitas vezes (a imprensa) acaba caindo em várias armadilhas, intencionais ou não, e compactuando com o discurso oficial. Isso ficou claro quando o Temer anunciou o fim da greve. Ele juntou alguns representantes de entidades lá no palácio e monocraticamente anunciou que a greve acabaria, e claramente isso não aconteceu. Então eu acho que falta senso crítico em relação a isso”, contou. 

Luciana Kraemer apontou e criticou uma imprensa pautada pelos poderes. “A agenda dos veículos, tirando os independentes, tem sido a dos governos, o que o ele faz, deixa de fazer ou tá fazendo. Então, quando os poderes fazem, dizem ou agendam algum ato ou ação, aí a imprensa vai atrás. Acho que a imprensa tá muito reativa e não pró ativa”.

 

Principais manchetes do Jornal Zero Hora, durante a greve | Foto: Reprodução

Quem acredita que a greve dos caminhoneiros tenha sido um evento complexo para se acompanhar é o professor de Jornalismo da Unisinos Felipe Boff. Para ele, os jornalistas não são figuras desligadas do restante da sociedade e sofreram dos mesmos efeitos do restante da população. Mas, apesar de tal condição, ele não poupou críticas ao trabalho da imprensa na cobertura o evento.  

“Percebi que, no primeiro momento, não se mostrou tanto o caminhoneiro. Quando eclodiu a greve, ele não era o principal da cobertura, e sim, imediatamente, se partiu para cobrir os efeitos da greve.  A imprensa procurou ouvir o caminhoneiro a partir do momento em que viu que aquela liderança que negociava com o governo não representava de fato a categoria. Então, foi se tentar descobrir quem são essas pessoas que estão protestando e o que elas querem”, comentou o professor.  

A pesquisadora e professora da Unisinos, Dra. Beatriz Marocco avaliou o discurso da mídia como “alarmista”. Ela apontou as manchetes voltadas para o desabastecimento de combustíveis, alimentos e medicamentos que predominaram as reportagens. “O discurso parece voltado a amedrontar as pessoas em relação ao desabastecimento nos setores de alimentação e hospitalar. Há um predomínio do discurso oficial”. Beatriz ainda bateu o martelo dizendo que “no Brasil, mídia e governo são irmãos siameses”. 

 

Os porquês atrás da prática

A cobertura da greve não se diferenciou drasticamente de um veículo a outro, dentro da imprensa mais tradicional. De modo geral: sobraram oficialismos, faltaram lados a mostrar. Na televisão, repórteres se revezavam em entradas ao vivo, e, por diversas vezes, com a função de repetir informações.  

“A repetição é característica da cultura de massa, na qual o jornalismo também se inclui. A repetição da informação tem função de redundância para que seja assimilada e chegue a todos. Há, também, uma repetição na forma, que faz ouvir sempre as mesmas fontes”, explicou a pesquisadora Dra. Christa Berger. Ela acredita que tal prática tenha, de fato, criado um efeito alarmista na população, enfatizando os efeitos da greve e criando uma espécie de caos social.

Tanto Christa, quanto Beatriz concordam, quando afirmam que a mídia criou um alvoroço na população, com a chamada Teoria Hipodérmica, conhecida no jornalismo. A teoria afirma que uma mensagem enviada para um público afeta a todos os indivíduos da mesma maneira. O que, neste caso, explicaria o fato de que a imprensa teria inflamado a população quanto a falta de abastecimento, criando filas gigantescas nos postos de gasolina e supermercados.  

Na opinião de Felipe Boff, os veículos de comunicação não têm o poder de determinar o caos, o que não significa que, em algum momento do passado, não o tenha feito. “Talvez nos primórdios essa teoria tivesse mais sentido, não hoje, com a variedade de canais de informação que nós temos. Não vejo que a imprensa disseminou o caos, eu acho que a ela noticiou. O grande cuidado que nós precisamos ter é sempre a informação de contexto, mostrar que isso aconteceu ali e não necessariamente tá acontecendo em todo lugar”.  

Luciana disse que a mídia pecou em não ouvir os manifestantes, mas que isso é um reflexo histórico do distanciamento dos profissionais com os ativistas dos movimentos sociais. Segundo ela, o jornalismo é uma profissão conectada à sociedade, e que, por isso, poderia trazer abordagens diferentes da mobilização sem depender do ponto de vista do governo.  

Beatriz sentenciou que o enquadramento, a escolha do que mostrar, por parte da mídia, é, por si só, uma forma de manipulação das informações. Christa não retirou a responsabilidade dos veículos, mas afirmou que há a ausência de recepção crítica por parte da população, para que possa se contrapor a esse efeito do enquadramento midiático.

 

O que, de fato, aprendemos?  

Boff acredita ser um romântico do jornalismo ao afirmar que o mal das redações é quando o profissional não sai para a rua e acaba realizando um trabalho pelo telefone, e-mail e, pela própria ironia do movimento, pelo WhatsApp. “É o que vai diferenciar mais o trabalho do jornalista do trabalho de quem simplesmente joga a informação na rede. O jornalista é o cara que tem a missão de ir lá, de ir até o fato e ver se tá acontecendo, conversar com as pessoas olho no olho, sabe? As outras pessoas não têm esse compromisso, né?”.  

Tanto os professores Luciana e Boff, quanto as pesquisadoras Christa e Beatriz apostam na formação dos profissionais para criar lógicas diferentes dentro da imprensa tradicional. Beatriz disse que as redações são majoritariamente brancas, e que, portanto, é difícil mostrar um lado que não o normativo destas pessoas. “Uma boa formação do jornalista pode mudar esta prática. As cotas são outro fator importante, porque pode tirar da classe média branca o predomínio nas redações jornalísticas”, disse. 

Foto: Gabriel Matula | Reprodução

Luciana é, entre outras, professora das disciplinas de Jornalismo Investigativo e de Telejornalismo na Unisinos. Ela apontou que o trabalho realizado dentro das salas de aula é o de justamente tentar desmistificar o jornalismo decoratório, de oficialismos. “Eu trabalho muito intensamente essa busca de pautas que não são agendadas pelo poder. Desfazer esse olhar do mais importante ser o que os poderes estão dizendo. Acho isso fundamental”.  

Demori falou que existem muitos profissionais excelentes na imprensa, mas que muitas vezes eles ficam presos as lógicas destas mesmas redações. “Cada uma dessas grandes organizações de mídia tem seus papéis bem estabelecidos no poder, então é injusto com o jornalista. Se os chefes de redação falassem para os seus jornalistas ‘nada de hard news, vamos fazer uma cobertura fod*, vamos ver o que a gente consegue trazer’. Temos jornalistas muito bons por aí, esse jogo não é justo”, afirmou.  

Boff também falou sobre as dificuldades da imprensa e o quanto isso pode ter afetado o trabalho na cobertura desde evento. “Não é que a imprensa não saiba disso, ela sabe, por outro lado, ela tá sendo muito pressionada com os custos de produção do jornalismo. As pessoas não querem pagar por informação. Aí, como tu vai colocar um repórter na rua se não tem receita pra isso? A imprensa deixa de fazer o trabalho completo, em boa parte, porque ela não tem condições de fazer”, alegou. 

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