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Estudos de gênero ganham espaço no meio acadêmico
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No dia 17 de maio, se comemorou o Dia Internacional contra a LGBTQfobia. As redes sociais foram tomadas por empresas, artistas, políticos e militantes que postaram mensagens em apoio à causa. No Brasil, país que mais mata LGBTQs no mundo, a data foi pouco, ou nada notada pela imprensa tradicional. Nos veículos gaúchos, pelo menos, a comemoração foi lembrada somente no dia seguinte, quando o casamento entre um homem e uma transexual estampou as capas.   

Mas por que gênero, uma temática tão debatida na internet, ainda anda nas margens do jornalismo? A resposta pode ter origem na formação dos profissionais e professores da academia. Na qualificação da tese de doutorado, o jornalista Tainan Pauli Tomazetti realizou um mapeamento das teses e dissertações de comunicação pelo Brasil, que abrangem a temática no período de 2010 a 2015. Ele descobriu que, dos 4643 trabalhos produzidos, apenas 93, ou 2% do total, tiveram relação a estudos de gênero. Deste número, 25 ligam o assunto com jornalismo. 

A jornalista e pós-doutoranda em Comunicação pela Unisinos Márcia Veiga da Silva é responsável por duas das 25 pesquisas citadas acima. Ela ingressou na área de gênero há 18 anos, quando trabalhava como assessora de imprensa na ONG feminista Themis: Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero. Foi na organização, acompanhando os estudos de antropólogas e juristas, que surgiu o interesse no tema.

Márcia tem dupla formação: em gênero e em jornalismo. Mas foi somente em 2008, com o projeto de mestrado, que passou a ser, oficialmente, uma pesquisadora de gênero. Ela atribui o baixo número de produções acadêmicas sobre o tema e a falta de espaço na agenda dos veículos ao déficit na formação dos profissionais. “Isso acontece muito porque as sistemáticas não são trazidas, não fazem parte da formação dos professores, não está na universidade de uma forma oficializada”, salienta. 

 

Dos 4643 trabalhos acadêmicos produzidos
no Brasil, entre 2010 
e 2015, apenas 2% tiveram
relação 
com estudos de gênero. 

 

“O gênero do jornalismo é masculino” 

Durante o mestrado, a jornalista passou três meses acompanhando a rotina de produção de um telejornal do Estado. Ela analisou a linguagem utilizada pelos agentes nas reportagens, o discurso e saberes que circularam no local e as relações entre os profissionais. A dissertação resultou no livro Masculino, o gênero do Jornalismo. “No meu estudo de mestrado, eu entendi que o jornalismo possuía gênero, e era masculino”, afirma Márcia.  

Nas teorias do jornalismo, a Teoria Construcionista, que fala sobre o papel do jornalismo na construção social, tem como uma de suas linhas principais a inexistência de uma linguagem neutra. Portanto, a escolha das palavras pelo profissional tem forte poder discursivo. Nos estudos de gênero, e segundo a qual Márcia segue, a corrente do pensamento pós-estruturalista, destina um papel importante para a linguagem.  

Para a pesquisadora, o jornalismo reproduz a heteronormatividade da sociedade, que corresponde a norma geral de valorizar não só mais aos homens, mas aos atributos considerados do masculino – força, proatividade, competitividade, individualismo, relações de autoritarismo. Possuir estes valores permite, nas palavras de Márcia, “melhores condições de acessar o poder e o prestígio, não apenas na sociedade de forma geral, mas no jornalismo em particular”. 

“Na hierarquia das notícias, as que têm mais prestígio e mais valor são as hard news, que são as informações duras e fortes. Aí a gente começa a olhar pela linguagem. De que campo são as hard news? São do campo da política, polícia, economia. Campos historicamente ocupados por homens. Outra coisa que acho interessante a gente pensar no masculinismo do jornalismo: o furador, o jornalista furador, que persegue o furo”, instiga Márcia. 

Gênero e jornalismo na história 

Os estudos de gênero deram os primeiros passos no Brasil no final dos anos 70, quando as temáticas feministas começaram a reivindicar espaço na agenda política. Mas foi na década seguinte que pesquisadoras começaram estudos sobre o assunto. Inicialmente, preocupadas com as relações de trabalho entre homens e mulheres, as pesquisas passaram a problematizar estas desigualdades em diferentes âmbitos. 

Foto: Reprodução

Contudo, como explica Márcia, estas análises não possuíam um bom valor na hierarquia do conhecimento, apesar de existirem dentro das universidades, e, portanto, eram tratadas como assuntos menores, vistas com desconfiança.  Foi somente em 2015, com a efervescência da primavera feminista, onde a internet ocupa um papel importante na ampliação da circulação de saberes, que os estudos de gênero ganharam força no Brasil. 

 “Percebe-se maior interesse e, principalmente, a inserção de uma geração mais jovem, porque há uma ampla circulação de saberes que estava colocada na universidade em alguns grupos, no movimento social, mas não tinha uma amplificação. Então, consequentemente, novamente por uma ação de militância, passa-se a ter mais interesse em se refletir sobre”, conta Márcia.  

Gênero no currículo 

A partir da ascensão da internet, as pautas feministas passaram a ganhar grande circulação e repercussão. Nos anos seguintes a 2015 diversos acontecimentos tomaram as mídias sociais e engajaram o público mais jovem. A emblemática propaganda do O Boticário, no dia dos namorados de 2015 – que demonstra dois casais homoafetivos se abraçando – foi espalhado pelas redes, recebendo desde ameaças de boicote a marca a mensagens de apoio.  

Foto: George Campos | Reprodução

A repercussão da propaganda foi tema do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) de Francielle Esmitiz, hoje mestranda em comunicação pela Unisinos. Ela teve o primeiro contato com estudos de gênero em 2014, quando ingressou na Iniciação Científica, mas sem orientação específica. “Eu e o Christian (colega de IC na época) fomos muito metidos. A gente teve muita dificuldade e acabou começando por textos muito difíceis”, explica. 

Pensando em oferecer suporte teórico para as novas pesquisas atravessadas pelas temáticas de gênero, o Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM) da Unisinos, conta, desde o primeiro semestre deste ano, com uma disciplina de gênero. Intitulada “Seminário da Linha de pesquisa 2 – Introdução ao conceito de gênero como categoria analítica e epistemológica para pensar a alteridade nas relações de poder-saber a partir do jornalismo”, ministrada por Márcia Veiga. Ela integra o quadro de pesquisadores da Unisinos desde 2015, quando conquistou uma bolsa para realizar o pós-doutorado.   

“Eu, sendo uma pesquisadora da área e com o tema em destaque nos últimos tempos, percebo também que posso contribuir com essa expertise. Por isso, surge esta disciplina a fim de contribuir com alunos e alunas que estejam com diferentes atravessamentos. Mesmo que não diretamente, gênero seja algo central nos seus trabalhos e sempre penso que trazer este aporte e poder pensar sobre é fundamental”, enfatiza a professora.  

Apesar de ser eletiva, a disciplina conta com um número significativo de participantes e se configura como uma das turmas mais cheias do semestre. São 14 alunos de diferentes cursos e linhas de pesquisa do programa estudando as relações entre gênero e jornalismo. Márcia conta que a ideia é trabalhar com os estudantes para que eles possam perceber, como as questões de gênero operam em relações de poder.  

Outra iniciativa que vem surgindo dentro do PPGCOM da Unisinos é um grupo de estudos sobre gênero, formado por alunos do mestrado e doutorado. Francielle faz parte do grupo e conta que, mesmo em fase inicial, eles já conseguiram promover encontros com leituras de textos e diferentes materiais sobre o tema.  

O próximo passo inclui estender o projeto para a graduação.  “Nos cursos da comunicação não tem nenhuma disciplina de gênero. Quando eu fiz o meu TCC vi como seria bom ter uma disciplina, um encontro, um grupo, alguma coisa que pudesse dar este suporte”, conta Fracielle. 

Mudança no horizonte 

Foto: Reprodução

No dia 16 de março, o jornal El País anunciou a criação de uma nova figura em seu corpo editorial: uma editora de gênero. Segundo o veículo, a jornalista Pilar Álvar tem sob sua responsabilidade planejar e melhorar a cobertura sobre o assunto. Pilar trabalha no jornal desde 2007 e é especializada em temas de igualdade.  

Em comemoração ao dia internacional contra a LGBTQfobia, o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS) lançou o Manual de Comunicação LGBTI+. Carregado de novos conceitos e terminologias, a publicação serve também como um dicionário, orientando estudantes e profissionais durante sua escrita.  

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