Depois de quase dois anos, a Feira do Livro de Porto Alegre voltou às ruas, assim como a equipe de repórteres do portal Mescla, que desde março de 2020 realiza as coberturas e as produções de matérias de modo totalmente remoto. Todo o movimento de retomada das atividades presenciais só foi possível devido à estabilização no número de casos de pessoas com a Covid-19.
Ao voltar às origens do jornalismo, caracterizado em coberturas de rua, a equipe do Mescla, composta por Karolina Kraemer, Paola De Bettio Torres e Tynan Barcelos, conta em crônicas a experiência de estar na Feira do Livro de Porto Alegre. Confira.
Perspectivas de mundo – por Karolina Kraemer
A saída para a Feira do Livro seria minha primeira experiência como jornalista de campo e, ainda assim, minha maior preocupação não foi as fontes que poderia encontrar ou as fotografias que tiraria, mas a roupa que eu iria usar. Não por querer algo que ficasse bonito, mas sim, um “figurino” seguro. Perceba que eu não falei confortável, e poderia ser por precisar caminhar, nem leve, por conta do calor de Porto Alegre, mas seguro (é muito curto? decotado? transparente? chamativo?), porque eu sou mulher e nunca se sabe quem vai estar andando na rua também.
Fiquei me perguntando como as jornalistas que estão na rua todo o dia lidam com esse tipo de insegurança … O que passa pela minha cabeça nessas situações equivale a cinquenta páginas, quase um TCC, mas acontece em um segundo, tão rápido que nem eu consigo resenhar depois.
Por ser uma ansiedade cotidiana para as mulheres, logo ela foi estabilizada, principalmente depois de relembrar três coisas: 1) meus colegas estariam comigo; 2) essa era uma oportunidade de conhecer sobre o jornalismo fora de uma redação (que por meses foi a minha casa); e 3) eu queria muito comprar livros novos, afinal, ninguém é de ferro!
Essa foi a primeira vez que pisei na Feira do Livro de Porto Alegre. Se fui levada quando pequena é outra coisa. Moro na região metropolitana e confesso que achava que seria maior, tanto em bancas, quanto pessoas – provavelmente por sempre imaginar um espaço lotado quando via matérias sobre o evento na TV. Não é que eu tenha sido iludida. A Feira está ao menos quarenta por cento menor, descobri essa estimativa em uma das bancas.
A livreira que me passou essa informação disse que muitas pessoas optaram por não participar da Feira esse ano, o que me surpreendeu, porque tudo lá parecia muito vivo, como se nada sobre o mundo tivesse mudado. Ficou fácil não prestar atenção às máscaras e ao álcool em gel, afinal, eles já fazem parte da rotina. De certa forma, quando voltamos a ter liberdade para fazer o que fazíamos é fácil esquecer que ainda estamos no meio de uma pandemia. E, para mim, isso foi o que mais se destacou.
Na Feira, vi pessoas debatendo sobre autores e temáticas, estudantes empolgados ainda com o uniforme escolar, talvez em uma excursão, mães e pais com crianças no colo e até mesmo idosos, todos vivendo, pela primeira vez ou relembrando, a experiência da Feira do Livro.
Fora do evento, uma paisagem diferente. Lembrei do centro de Porto Alegre cheio, um mar quase infinito de pessoas, me surpreendo com o quanto, em quase dois anos, as coisas podem mudar tanto.
Será esse o novo normal que tanto falam? Esse cenário é melhor ou pior? Não sei responder nenhuma dessas perguntas, mas as cores das bancas, os sons de mil conversas ao mesmo tempo e o cheiro de pipoca doce, me provaram que estar vivo nunca foi tão celebrado.
Eu vejo o hoje como algo muito carregado de persistência. Diante de tudo de ruim que possa acontecer queremos continuar e ver o próximo dia. Nesse sentido, a arte, no campo da literatura principalmente, me passa a impressão de compartilhar experiências na tentativa de ajudar a sociedade a resistir acima de tudo.
Porém, mesmo em um evento que celebra essa busca por conhecimento, é possível ser lembrado que, na maioria das vezes, o acesso a ele não é democrático. Eu comprei três livros na Feira e pouco depois de comprar o último (que deveria ter sido o segundo) sai com meus colegas para tomar um café.
Enquanto conversávamos, pelo menos, duas pessoas passaram pedindo dinheiro para comprar algo para comer. Independentemente do “novo normal” que está sendo debatido, a verdade é que vivemos uma realidade na qual alguns gastam R$ 50 em um livro e muitos passam dias sem conseguir se alimentar.
As coisas que apenas um dia na rua podem te mostrar são diversas e é impossível sair de casa e voltar sem alguma nova ou reforçada perspectiva sobre algo – do preço das passagens do transporte público à falta de uma distribuição de renda adequada – possibilidades infinitas e que, muitas vezes, requerem soluções a longo prazo e, acima de tudo, coletivas.
Voltando para casa de trem, depois de exposta a tantos estímulos diferentes, só conseguia sentir o cansaço batendo. Imaginei como seria ser confrontada com o melhor e o pior do ser humano sem poder “desligar a tela”, estar em campo buscando as mais variadas pautas, uma síntese da vida que estou construindo para mim daqui para frente. Antes que a ansiedade e a precipitação sobre um futuro distante pudessem tirar o melhor de mim, minha estação foi anunciada e, tão logo, a única preocupação era a aula da noite.
Queremos ler um novo mundo – por Paola De Bettio Torres
A tarde daquela quarta-feira não poderia ser melhor. Com sol, calor e a brisa que vinha de vez em quando da direção do Guaíba, combinados com a alegria de ver uma cidade em movimento em torno de livros, bancas e patrimônio histórico. A amenidade dos ares de primavera foram um suspiro depois de quase dois anos de tensão pela pandemia.
A pandemia de covid-19 ainda não acabou, mas ao contrário do ano passado, as expectativas de melhora e esperança são bem mais altas. Os índices permitiram que a tradicional Feira do Livro de Porto Alegre pudesse acontecer na Praça da Alfândega e arredores. Apesar da nossa visita ter acontecido à tarde, no meio da semana, pude perceber um movimento considerável de pessoas se debruçando ou apenas observando pilhas e estandes de livros. Há questões sensoriais muito particulares e diferentes estando frente à frente das capas, das cores dos livros, podendo ler suas resenhas e seus trechos.
A Feira do Livro é um evento muito democrático. Há romances, ensaios, ficções, poemas, narrativas históricas,,com temáticas políticas e religiosas. Livros de arte, de fotografias, de culinária, histórias em quadrinhos e de contos infantis com ilustrações simpáticas. Muitos livros estavam sendo expostos ao público pela primeira vez mesmo tendo sido lançados em 2019 e 2020.
“Para ler um novo mundo” foi o título para a 67ª edição do evento. Não há como contestar que vemos o mundo com novas perspectivas. Isso já costuma acontecer em ciclos, muitas vezes individuais, de forma natural, mas agora tomou força coletiva, evidenciando problemáticas e novos ângulos.
O patrono desta edição, Fabrício Carpinejar, considerou o evento uma “fisioterapia social”. A retomada lenta (e particularmente assustada) do convívio social acabou por sensibilizar e aguçar meu olhar curioso. Assim, faz todo o sentido a consideração do autor, mas além dessa retomada, o evento mostra que a gente além de retomar aos poucos o contato com as ruas e com as outras pessoas, estamos retomando o hábito de ler. Para isso, buscar pelo mundo de sensações e experiências, pode auxiliar a ler o mundo ser uma tarefa um pouco mais fácil, e também mais interessante.
Não poderíamos ter encerrado melhor: a Câmara Rio-Grandense do Livro (CRL), que organiza o evento, realizou o levantamento da feira e registrou um aumento de 15% nas vendas em relação à última edição, que aconteceu em 2019, antes da pandemia. No fim das contas, queremos entender o mundo, nos atualizar do que se tem pensado sobre as coisas, sobre as pessoas. Isso só pode acontecer quando estamos diante desse mundo, de corpo inteiro no presente. “Queremos saber”, música do Gilberto Gil, escrita em 1976, elucida bem este momento.
Sobre livros, pessoas e monumentos – por Tynan Barcelos
Se para Gil o domingo é no parque, para mim a quarta foi na feira. Através dos imensos corredores de prédios antigos no Centro Histórico, o intenso calor conduzia o caminho para chegar até a Praça da Alfândega, em Porto Alegre. Depois de dois anos, a Feira do Livro, agora em sua 67ª edição, está de volta e apesar do número reduzido de bancas e do pouco movimento, até mesmo para uma quarta-feira, é um local que respira cultura e uma certa esperança de tempos melhores.
Apesar de ter na minha imaginação uma feira maior, principalmente pelo fato de nunca ter estado lá, percebi que mais do que ser apenas algo sobre livros, autores e palavras, a Feira do Livro de Porto Alegre é sobre espaço, ou melhor, sobre espaço cultural.
Não sei se as crianças, os adultos e os idosos que estavam naquele dia percebiam, mas a feira do livro de Porto Alegre está no coração cultural da cidade. Quando se entra pela rua 7 de setembro, logo à direita já se consegue ver o Farol Santander, o Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul e o Museu de Arte do Rio Grande do Sul (MARGS). Se optar por caminhar mais alguns metros, está lá também o Museu da Comunicação Hipólito José da Costa. Todos eles ao redor das diversas bancas que vendem ali seus saldos por alguns poucos trocados ou até mesmo o best-seller nacional.
Talvez, perdoem minha petulância, mas os livros não são os personagens principais da feira. O sentido está no encontro, na conversa com as livreiras e livreiros. O sentido está no pacto cultural, que mesmo não intencionalmente, já é firmado no momento em que se começa a percorrer o corredor de prédios que leva até a feira.
Assim como a cidade de Atenas na Grécia, com sua Acrópole e seus templos, guarda a memória de um tempo lúdico onde os deuses e titãs reinavam, todo entorno da Praça da Alfândega, com suas bancas, seus livros e seus enormes prédios que datam séculos passados, preserva o tempo de uma cidade que, depois de dois anos confinada em casa, não via a hora de estar na rua.