Após uma série de conflitos que tiveram início em maio deste ano entre o Estado de Israel e o povo palestino, a tensão parece ter diminuído. Mesmo assim, em um contexto geral, o confronto entre as duas pontas se agravou e tomou grandes proporções. Em apenas uma semana de maio, o fluxo de mísseis disparados entre Israel e a Faixa de Gaza foi o mais intenso desde a guerra travada em 2014 entre os dois povos, gerando mais de 200 mortes de civis na região, principalmente mulheres e crianças palestinas.
Nesta montanha russa de acontecimentos, o jornalismo está sempre numa encruzilhada: dar conta do fluxo cada vez maior de informações que circulam sobre a situação dos dois lados, ao mesmo tempo em que ressente de conhecer melhor o contexto das pessoas que estão inseridas nesta região tão histórica e complexa: o Oriente Médio.
Apesar das dificuldades e do perigo, “a guerra é o auge da carreira de um repórter”. É o que diz o jornalista Rodrigo Lopes. Repórter internacional do Grupo RBS há 20 anos, participou de mais de 30 coberturas no Exterior, dentre elas, as guerras do Líbano (2006) e da Líbia (2011), o resgate dos mineiros no Chile (2010) e as eleições presidenciais nos Estados Unidos (2008, 2012 e 2016). Mesmo trabalhando no estado mais ao sul do país, o jornalista, que vive em Porto Alegre, é referência nacional em coberturas internacionais, sendo algumas delas no Oriente Médio. “Além da dificuldade do fazer jornalístico em si, a logística e os acessos aos locais são fatores que dificultam”, explica Rodrigo, que também é colunista na empresa jornalística.
A conversa com Rodrigo foi realizada por videochamada e, mesmo estando em casa, deu para perceber que o jornalista está o tempo todo conectado com os assuntos que acontecem no mundo. Enquanto conversava com o Mescla, ele dividia as atenções entre a tela do computador e a tela de sua televisão, que mostrava, no dia 16 de junho, o primeiro encontro entre o presidente eleito dos Estados Unidos, Joe Biden, e o presidente russo, Vladimir Putin.
Nas coberturas, outro aspecto importante, segundo o jornalista, é o equilíbrio entre o medo e a confiança. “Ao mesmo tempo que você precisa construir relações de confiança rapidamente, existe o medo de morrer, ser ferido ou até mesmo ser traído pela fonte.” No Oriente Médio, esse fator torna-se ainda mais preponderante, como mostram os dados da pesquisa anual realizada pela ONG Repórteres Sem Fronteiras. Em 2021, em um total de 200 países, sete que estão localizados na região do Oriente Médio estão entre os 20 piores lugares do mundo para se fazer jornalismo.
Rodrigo conta que quando viajou para o Líbano a fim de cobrir o confronto entre Israel e Líbano, em 2006, chegou a entrar em um carro do grupo extremista Hezbollah para poder chegar mais perto dos acontecimentos. Ao chegar no local, havia um drone sobrevoando a região. Toda a equipe precisou sair correndo para não ser bombardeada.
“Ao mesmo tempo que você precisa construir
relações de confiança rapidamente, existe o medo de morrer,
ser ferido ou até mesmo ser traído pela fonte”
Rodrigo Lopes
Também em 2006, para cobrir o conflito, Rodrigo foi o único repórter brasileiro a estar nos dois lados do ‘front’. Após um bombardeio de Israel, que vitimou vários civis libaneses, o jornalista foi até a região realizar a cobertura. Chegando lá, se deparou com um cenário de completa destruição. No meio disso tudo, ecoou um sinal avisando que um novo bombardeio estava por vir. “Tu não pensa em mais nada. Só pensa em fugir”, conta Rodrigo.
O equilíbrio emocional está no campo da subjetividade, fundamental para produzir mais detalhamento de como a matéria se constitui. Este aspecto é essencial para contar as histórias no meio de conflitos, revela Rodrigo, lembrando que, ao não fazer isso, o jornalista está, de certa forma, privando o leitor de parte da história. “Eu acredito na descrição dos fatos e na emoção, no sentido de dar ênfase ao que eu estou vendo e presenciando. Isso me dá poder argumentativo.”
Ao ser perguntado sobre como é fazer a cobertura de conflitos ligados a judeus e árabes, trabalhando em uma empresa em que a origem dos proprietários é judaica, ele responde: “Eu sempre recebi paulada dos dois lados, tanto da comunidade árabe quanto da judaica. Mas vejo isso como algo bom, que estou mantendo o equilíbrio.”
Rodrigo entende que há outros problemas mais difíceis de serem enfrentados nas coberturas brasileiras em relação ao Oriente Médio. “Vejo uma falta de conteúdo de qualidade, tanto na imprensa nacional quanto na internacional, diante da falta de investimentos por parte dos veículos nas coberturas in loco”, diz.
Segundo o jornalista, poucos veículos jornalísticos brasileiros seguem mantendo um correspondente internacional, tornando-os cada vez mais dependentes das agências internacionais. “São relatos ‘frios’, voltados para leitores do hemisfério norte, podemos assim dizer. Afinal, os interesses dessas agências não são os mesmos que os nossos”, enfatiza Rodrigo.
Uma região e um conflito cercado de complexidades
A região, que está fixada entre os continentes da Ásia, África e Europa, é complexa e problemática devido a três grandes fatores, como explica o professor das áreas de Direito e Humanidade da Unisinos Gabriel Adam. “O primeiro elemento é o econômico, principalmente pelo fato da existência de petróleo na localidade. Já o segundo fator é a questão geográfica, tanto por estar entre três continentes quanto por ser, historicamente, uma região de passagem de grandes embarcações, o que coloca o Oriente Médio como o centro do comércio internacional. E, por último, temos o aspecto cultural, visto que lá é o berço das três maiores religiões moneteístas: Islamismo, Cristianismo e Judaísmo”, explica Gabriel, que é professor do curso de Relações Internacionais.
As produções culturais (filmes, séries, livros) e a cobertura midiática são aspectos importantes na construção de sentidos e narrativas sobre esse tema. Para entender o papel discursivo do jornalismo ao longo das coberturas dos conflitos e dos problemas presentes na região, é preciso voltar no tempo, mais precisamente para a primeira metade do século 20, como explica o pesquisador em estudos da Comunicação e do Jornalismo Fernando Resende. Ele também conversou com o Mescla por videochamada, direto da Alemanha, onde está realizando pesquisa de pós-doutorado junto ao Interdisciplinary Centre for Global South Studies (ICGSS), da Universidade de Tübingen.
“Tal narrativa, que já estava presente lá no início do século passado, dá para gente uma clara percepção de como a compreensão daquele conflito, a partir da mídia, já era uma questão problemática”, contextualiza Fernando, que também é professor do curso de Estudos de Mídia e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação do Departamento de Mídia e Estudos Culturais da Universidade Federal Fluminense (UFF).
“O doloroso é ver que nossas instituições, não somente o jornalismo, ao invés de se pautar pelo interesse público, atuam sob a perspectiva do poder”
Fernando Resende
Essa problemática tem como principal fator a atuação das agências internacionais de notícias e dos grandes veículos de comunicação, tanto nacionais quanto internacionais. “Aqui no Brasil, isso está relacionado com a época em que os jornais foram se constituindo, nas bases de uma perspectiva positivista, e pelo entendimento de que as fontes ‘credíveis’ eram as oficiais, não escutando outros lados, considerados ‘ilegítimos’”, acentua o pesquisador.
Fernando Resende obteve tais percepções sob essas narrativas jornalísticas históricas através de uma pesquisa realizada por ele mesmo, em que analisou o jornal paulista Folha da Manhã entre os anos de 1936 e 1946. Segundo o pesquisador, os problemas com as agências internacionais já estavam presentes naquela época. “Por isso, não vejo atualmente um problema econômico no jornalismo, mas sim uma concepção e compreensão do papel do jornalismo enquanto agente daquilo que deveria e deve contribuir para algo que seja de interesse público”, reforça.
Além de evidenciar essas questões por meio de pesquisas, Fernando teve a oportunidade de entender melhor as complexidades da região in loco, através de uma viagem que fez para a capital de Israel, Tel Aviv. Lá, ele conseguiu perceber que os embates territoriais se desenvolvem por camadas. “Elas se sobrepõem a algumas narrativas macro, como a religiosa e a do terrorismo. Ou seja, existem diversos territórios dentro desses territórios”, frisa.
Quando esteve no bairro de Jaffa, ex-cidade símbolo da Palestina, hoje um bairro boêmio de Tel Aviv, Fernando percebeu as diferenças entre essas camadas territoriais. “Lá, o árabe não tem acesso às questões básicas, como, por exemplo, à educação. E isso a mídia tradicional brasileira não dá conta de trazer.”
Para o pesquisador, essa disputa de narrativas, até certo ponto, é do jogo. “O doloroso é ver que nossas instituições, não somente o jornalismo, ao invés de se pautar pelo interesse público, atuam sob a perspectiva do poder”, desabafa Fernando.
Relatos de conflitos e conflitos de relatos
Pelo menos nos últimos 20 anos, as plataformas de redes sociais se tornaram um componente importante no meio do contexto político e cultural que envolve o Oriente Médio. Recentemente, uma jornalista judia da agência de notícias estadunidense Associated Press foi demitida após emitir uma opinião, em sua rede social, sobre os conflitos. Emily Wilder criticou a maneira como a grande mídia estava lidando com as práticas isralenses contra o povo palestino no bairro Sheikh Jarrah, em Jerusalém.
Esse é um exemplo, na opinião de Fernando, de como se relacionam as redes e os veículos entendidos como “hegemônicos”. Para o pesquisador, com o avanço tecnológico, passamos a ter acesso a esses espaços, que antes não estavam disponíveis. Porém, pelo menos no Brasil, ainda existe uma assimetria das narrativas. “Aqui, os meios de comunicação tradicionais ainda têm um papel muito importante no desenvolvimento social, político e cultural”, explica Fernando. “Isso nos leva a um conflito de relatos”.
Mesmo assim, as novas mídias são importantes, principalmente, para os povos locais que estão imersos nesses conflitos, como explica o pesquisador. “Por exemplo, na Palestina, o povo ganhou muita força de resistência a partir dos acessos que eles passaram a ter através desses canais de produção de informações. Já no chamado ‘jornalismo tradicional’, é dada muita atenção para os tiros trocados e pouca atenção para as pessoas que estão inseridas naquele contexto.”
Entenda mais
Se o jornalismo tem limitações para preencher lacunas históricas e sociais acerca das questões que envolvem a região do Oriente Médio, para o pesquisador Fernando Resende, os filmes, livros e outras formas culturais podem nos ajudar a entender melhor tais complexidades.
Por isso, conversamos com o Alvaro Bertani, da locadora E o Vídeo Levou, empresa de aluguel e venda de filmes, localizada em Porto Alegre – que é quase uma cinemateca, pelo acervo que oferece. Foram várias as sugestões de filmes e documentários que poderiam ajudar a explicar o Oriente Médio e a histórica relação entre Israel e a Palestina. Separamos alguns e selecionamos indicações de leituras para você ficar por dentro do assunto.
- http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/570295-oriente-medio-a-solucao-existe-mas-ninguem-a-quer-entrevista-com-pietro-parolin
- https://piaui.folha.uol.com.br/materia/reporteres-ou-missionarios/
- http://www.ihu.unisinos.br/noticias/535518-a-religiao-vai-se-apoderando-da-politica-no-oriente-medio
- http://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/entrevistas/570324-a-disputa-por-um-novo-oriente-medio-entrevista-especial-com-paolo-branca