O convite veio de forma misteriosa e sucinta por uma colega de mestrado inglesa: “Infelizmente não posso enviar detalhes por e-mail. Mas estamos trabalhando com muitos jornalistas ao redor do mundo e adoraríamos ter você na equipe. Eu quero te dizer, por ora, que esse é um projeto extremamente excitante e que vai ser gigantesco no mundo todo. Tenho certeza que qualquer jornalista ia querer estar envolvido nele.” Foi o suficiente para a paulista Natalia Viana partir para o Reino Unido em 2010.
Natalia é cofundadora da Agência Pública, especializada em jornalismo investigativo, que recentemente publicou uma reportagem trazendo acusações de crimes sexuais praticados por Samuel Klein, fundador das Casas Bahia. Há onze anos, porém, seu desafio era outro. Como uma responsabilidade tão grande quanto a enorme quantidade de informações que estavam sendo disponibilizadas, a jornalista encabeçou a frente que revisou os documentos que envolviam o Brasil no Cablegate, o mais emblemático dos vazamentos de dados militares de governo que se tem informação.
Entre os meses de outubro e novembro de 2010, o WikiLeaks, em parceria com os principais jornais do mundo, publicou cerca de 640 mil documentos sigilosos do Pentágono envolvendo relações diplomáticas dos Estados Unidos com vários países do mundo. Era outro momento da geopolítica mundial, época em que os Estados Unidos, estavam totalmente imersos na Guerra ao Terror, após os atentados em 11 de setembro de 2001. O inimigo estava em todos os lugares, e era ainda mais suspeito se fosse do Oriente Médio. A guerra desencadeou uma série de ações militares e de contrainformação estadunidenses ao redor do mundo, tornando estas uma das prioridades da política externa do país na primeira década do século 21.
Para Natalia, foram meses analisando milhares de documentos juntamente com quatro jornalistas (um sueco, um islândes e dois ingleses) e muitas histórias de bastidores que agora começam a ser compartilhadas.
São impressões, dificuldades, anseios que assumem uma narrativa autoral e passaram a ser publicadas em 11 episódios no formato newsletter em parceria com o canal Meio. Seguindo um modelo seriado, cada episódio traz um título e uma história. O primeiro é A mansão e os vazamentos, em que a jornalista também contextualiza a situação de Julian Assange e o alto preço que tem pago por radicalizar a transparência de dados: “Há anos que não tenho contato com Julian. Há um ano e meio ele está preso na prisão de segurança máxima de Belmarsh, na Inglaterra, onde recebe poucas horas de sol por dia e é mantido isolado e sem acesso à internet, à qual dedicou sua vida. Os relatos que recebo são de uma pessoa em avançada fase de deterioração física e mental”, revela a jornalista em trecho.
Ao voltar ao passado, Natalia revela histórias de bastidores ainda desconhecidas pelo público, e conta sua passagem e participação no vazamento que pode ter mudado a forma em como o Jornalismo dialoga com informações sigilosas e de interesse público.
A newsletter, que ainda pode ser recebida por e-mail para quem se inscrever, traz aspectos pessoais da experiência, como o constante contato da jornalista com toda uma estrutura de segurança tecnológica digna de uma agência da CIA ou da antiga KGB, e o convívio com uma lógica colaborativa de trabalho com as informações.
Natalia comenta no primeiro episódio, por exemplo, que Assange teve influência ao implantar esta tecnologia para o campo do jornalismo. “Julian inaugurou uma tendência. Foi a primeira parceria entre dois grandes jornais brasileiros (Folha e O Globo) em um furo dessas proporções, algo realmente novo naquela época, e que hoje parece tão normal”, compartilha a jornalista na newsletter.
Por outro lado, ela também explorou suas próprias dúvidas sobre os limites éticos das publicações de diálogos da diplomacia, salvaguarda estratégica para qualquer país. “Eu tinha direito de ler aquelas correspondências? E se o conteúdo não fosse de interesse público? Onde termina o jornalismo e começa o voyeurismo? E como avaliar se o que diziam os políticos, a portas fechadas, era verdade ou mentira? Quais os limites factuais de um relato escrito por um embaixador gringo em terras alheias?” questiona ela no episódio 3: O WikiLeaks no Brasil.
Graças ao WikiLeaks, algumas práticas que violavam direitos humanos se tornaram públicas, forçando o país a dar explicações. Um pouco antes do Cablegate, as atenções já se voltaram para os Estados Unidos quando o WikiLeaks divulgou um vídeo feito em julho de 2007, que mostrava civis iraquianos sendo mortos em Bagdá, após um ataque aéreo. Segundo o próprio WikiLeaks na época, as imagens foram capturadas através de câmeras em helicópteros Apache dos Estados Unidos.
Conversamos com a jornalista para saber um pouco sobre a sua participação no projeto e, também, sobre sua visão diante de algumas questões que o WikiLeaks trouxe, como, por exemplo, a decisão da justiça britânica em janeiro deste ano, que optou pela não extradição de Julian Assange para os Estados Unidos. Na entrevista, ela comenta que houve erros na condução final do Cablegate, tanto por parte da imprensa, quanto do WikiLeaks. Natalia também fala sobre a real intenção dos Estados Unidos em manter Assange nesta situação. “Eles querem manter ele neste ‘limbo’ como um exemplo para outras pessoas não fazerem a mesma coisa”, explica. Confira a entrevista.
Dilemas novos para antigas práticas
No momento em que a newsletter recupera as experiências de Natalia e contextualiza todos os desdobramentos de Cablegate, após 20 anos de ocupações e espionagem, os Estados Unidos preparam o encerramento das operações no Afeganistão, país que há duas décadas é ocupado pelas tropas estadunidenses. É mais um capítulo na história dos vazamentos de informações que sempre estiveram presentes no cotidiano da sociedade e, principalmente, dos jornalistas e profissionais da área de informação e tecnologia. Porém, nas últimas duas décadas, com a digitalização do mundo, esta prática tornou-se mais recorrente, além de trazer consigo uma série de novos desafios e também dilemas, que envolvem tanto o campo do Jornalismo, quanto do Direito.
Se lá nos anos 1970 os vazamentos destituíram um presidente estadunidense e também revelaram segredos de guerra do país ianque, hoje um único vazamento pode criar uma crise geopolítica entre diversos países, de diferentes continentes. Dentre os vazamentos contemporâneos que envolveram a sociedade civil e o jornalismo, estão o caso Snowden e a Vaza Jato, aqui no Brasil.
Em 2013, o então funcionário da CIA Edward Snowden se encontrou com o jornalista Glenn Greenwald e a cineasta Laura Poitras, em Hong Kong, para entregar uma série de documentos secretos que confirmavam a existência de programas de vigilância em massa da NSA. Na época, Snowden afirmou que sentiu a obrigação de denunciar ao mundo, mesmo isso afetando sua vida pessoal, os enormes poderes de vigilância acomulados pelo governo dos EUA.
Os dilemas variam, conforme os diferentes entendimentos éticos dentro de um caso, e vão desde o recebimento de materiais, obtidos pelos ‘vazadores’ e repassados aos jornalistas, até o uso de tais materiais em decisões jurídicas. Se por um lado a opinião pública pode ser um fator preponderante, do outro, a legalidade ou ilegalidade de uma prova é determinante em um processo.
Já na Vaza Jato, foram vazadas conversas realizadas no aplicativo Telegram entre o ex-juiz e ex-ministro Sergio Moro e o promotor Deltan Dallagnol, além de outros integrantes da força-tarefa da Operação Lava Jato. A divulgação dessas conversas foi feita também pelo jornalista Glenn Greenwald no portal jornalístico The Intercept Brasil. Até o atual momento, o Intercept mantém a fonte dos vazamentos em sigilo. As conversas indicam que Moro cedeu informação privilegiada à acusação, auxiliando o Ministério Público Federal (MPF), além de orientar a promotoria, sugerindo alterações nas fases da Lava Jato.
Um único vazamento, diferentes percepções éticas
Para o pesquisador e co-fundador do Observatório da Ética Jornalística (objETHOS), Rogério Christofoletti, iniciativas como o WikiLeaks são um marco para a vida cívica contemporânea, atuando de forma direta na liberdade de expressão e no direito à informação.
Porém, Rogério comenta que os dois campos compreendem diferentes percepções éticas. “O WikiLeaks não segue necessariamente uma ética jornalística quando publica os conteúdos em seu site. Eles fazem isso custe o que custar, doa a quem doer”, reforça Rogério, que também é doutor em Ciências da Comunicação pela USP.
Já o jornalismo tem algumas regras distintas. Como explica o pesquisador, além de verificar a autenticidade dos conteúdos e também de confirmar informações antes de publicá-las, os jornalistas também editam estes mesmos conteúdos, levando em conta preocupações como a de não expor e a de colocar em risco a vida das fontes. “O processo de edição também pode resultar na publicação de parte do material recebido e não a sua integralidade, tendo em vista alguns critérios como a relevância, o contexto, a oportunidade, a proximidade geográfica, entre outros”, explica Rogério.
De forma legal ou ilegal, os vazamentos acontecem e os jornalistas recebem os documentos. Por isso, é necessário cuidados antes de classificar um determinado pacote de informações. “É sempre muito fácil qualificar um vazamento inoportuno de “vazamento ilegal”. Afinal, ao fazê-lo, você deslegitima a prática e, por consequência, os conteúdos que ela revela”, comenta o pesquisador, que também alerta para os cuidados que os jornalistas devem ter ao receber estes materiais. “Quando recebem conteúdos vindos de um vazamento, jornalistas precisam estar atentos à origem do material, à sua autenticidade e veracidade, à natureza do conjunto dos dados, e seu alcance em termos de repercussão. Não é um trabalho fácil nem rápido, mas necessário. Jornalistas e ativistas pela transparência – como o WikiLeaks – podem trabalhar juntos.” O que de fato ocorreu, pois as matérias foram publicadas pelo Der Spiegel, Le Monde, The New York Times, The Guardian e El País em uma parceria histórica.
“Não existe na história da humanidade avanço sem esse conflito do legal e do ilegal”
Segundo o professor da Escola de Direito da Unisinos e doutor em Filosofia pela UNICAMP, Jose Rodrigo Rodriguez, há uma constante relação de tensão entre o Jornalismo e o Direito. “É bom que esta tensão permaneça. O padrão do jornalismo não precisa ser o mesmo do direito. O Jornalismo trata da questão do interesse público, já o Direito varia de processo para processo. No Direito, existe a questão de uma prova (vazamento) ser considerada legal ou ilegal durante um julgamento”, contextualiza o professor, que também reforça que sempre existirá um eterno conflito entre as duas áreas, enquando o poder existir. Para ele, a tendência do poder é sempre sair dos seus próprios limites.
“O padrão do jornalismo não precisa ser o mesmo do direito”
Jose Rodrigo Rodriguez
Conquistas de direitos na história do ocidente jamais foram feitas sem questionar esta fronteira entre o lícito e o ilícito, segundo o professor. “Por exemplo, houve um momento na história em que era proibido criar e organizar sindicatos. Isto era considerado uma violência contra a propriedade privada. Não existe na história da humanidade avanço sem esse conflito do legal e do ilegal”, exemplifica.
Rodriguez comenta que é necessária uma discussão para encontrar formas de proteger os chamados whistleblowers, termo utilizado para mencionar pessoas que vazam as informações para a imprensa ou para o público, como Chelsea Manning e Edward Snowden. “É necessário criar um sistema internacional de proteção, pois eles lidam com pessoas muito poderosas. Isto está no limite da tensão entre direito nacional e internacional.” Atualmente, Assange está preso no Reino Unido, enquanto Snowden está em asilo político na Rússia.