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Manifestações sexistas, racistas e homofóbicas não estão no escopo da liberdade de expressão
"O presidente da Ajuris, Orlando Faccini Neto, falou sobre as liberdades e o direito, tema da Aula Inaugural do curso de Jornalismo da Unisinos, que será realizada na próxima quarta-feira, dia 21"
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Para o coordenador do curso de Direito da Unisinos (campus Porto Alegre), Guilherme de Azevedo, o tema da liberdade de expressão e da imprensa ganhou novos contornos nestes tempos: “Na opinião de alguns, experimentamos o melhor momento para a liberdade de expressão e de imprensa, visto que as pessoas, por exemplo, podem, do sofá da sua casa, criar um canal no YouTube, produzir conteúdo ou emitir sua opinião. Porém, do outro lado, esse mesmo momento representa uma situação de desconforto à prática jornalística, por meio da desinformação e de situações desafiadoras no judiciário”, explica o professor.


O fato das liberdades serem tema de julgamento e interpretação por parte dos operadores do direito fez com que o curso de Jornalismo da Unisinos trouxesse os dois campos para dialogar. Na próxima quarta-feira, dia 21, a presidenta da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), Maria José Braga, e o presidente da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris), Orlando Faccini Neto, vão expor suas posições na Aula Inaugural do curso de Jornalismo, que será transmitida pelo canal do Portal Mescla no YouTube, a partir das 19h30min. O debate será mediado pelo professor de Jornalismo Felipe Boff.

A Aula Inaugural será aberta ao público e estará disponível no canal
do Portal Mescla no YouTube. (Foto: Divulgação)


Depois de entrevistar a jornalista Maria José Braga, agora o Mescla conversa com o magistrado Orlando Faccini Neto, que também é professor do Mestrado do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e da Escola da Magistratura da Ajuris. O convidado é ainda autor de livros sobre direito, dentre eles “Elementos de uma teoria da decisão judicial – hermenêutica e Constituição e respostas corretas em direito” e “Teoria geral do crime”.


Orlando é formado pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo (SP) e foi eleito presidente da Ajuris para o biênio 2020-2021. Iniciou sua carreira na magistratura em uma data curiosa: no dia 11 de setembro de 2001, mesmo dia dos ataques terroristas ao World Trade Center, em Nova York, nos Estados Unidos. Além de já ter trabalhado como titular nas comarcas de Jaguarão (RS) e Passo Fundo (RS), ambas na área criminal, ele atuou durante um período no gabinete do ministro Felix Fischer, no Superior Tribunal de Justiça, em Brasília, o auxiliando em julgamentos de recursos de processos da Operação Lava Jato. Confira a entrevista:


Mescla: Em um contexto nacional atual, relacionado com um ambiente democrático, como o senhor avalia a liberdade de imprensa no Brasil?

Orlando Faccini Neto: Os processos sociais se apresentam de maneira diferente daquilo que acontece, por exemplo, no campo da ciência. A ciência, em geral, evolui e se apresenta como um progresso permanente. No âmbito das relações sociais, há avanços, mas também há retrocessos. A humanidade alcança patamares mais evoluídos e volta atrás, muitas vezes, numa mesma geração. Em relação à liberdade de imprensa, o quadro atual talvez revele um momento de crise. Isso por três aspectos principais: o primeiro deles determinado pela relação que se estabelece entre os governos e a imprensa, que muitas vezes desaba para o direcionamento de verbas aos órgãos que lhe são mais favoráveis. Neste sentido, quanto mais dependente for o veículo das verbas governamentais, mais comprometida estará a liberdade de imprensa, sendo que o número de leitores vem diminuindo ao longo dos anos, potencializando essa dependência. O segundo aspecto é a própria crise econômica, que é mundial e que coloca em xeque a liberdade do jornalista para com o órgão no qual trabalha. Quer dizer, a liberdade de imprensa deve ser verificada também nessa relação empregatícia entre o jornalista e o veículo que lhe emprega. Finalmente, há a questão das redes sociais, na medida em que muitos formadores de opinião hoje não pertencem exatamente àquilo que compreendemos como imprensa tradicional, e, assim, fragiliza-se a própria especialidade da profissão, fazendo com que, no universo das redes, surjam critérios variados tendentes a determinar o peso que se vai dar às notícias e opiniões. Isso tem a ver inclusive com patrocínios e anunciantes, colocando em risco a própria profissão jornalística.


Mescla: Vivemos em um momento de constantes ataques a jornalistas. Como que isso afeta os princípios de liberdade de imprensa?

Orlando Faccini Neto: O ataque a jornalistas, seja ele físico ou à reputação, ocorre não só no Brasil, mas mundo afora. Os ataques afetam a liberdade de imprensa, porque, deste modo, criam-se constrangimentos ao livre exercício da profissão. Isso acaba oportunizando uma espécie de pré-compreensão que causa temor ao profissional e que, consequentemente, acaba limitando o exercício da sua atividade.

“Embora não haja uma atuação específica relacionada às atividades dos jornalistas, nós somos membros do processo político brasileiro, emitindo notas, emitindo opiniões, que dizem respeito à salvaguarda desse interesse maior que é o de exaltar a liberdade de imprensa e a pluralidade de opiniões”


Mescla: Em relação à violência e os ataques aos profissionais jornalistas, de que forma a Ajuris trabalha com essa situação e com estes casos?

Orlando Faccini Neto: A Ajuris é uma associação que não se destina exclusivamente a tratar dos interesses dos juízes e das juízas do Rio Grande do Sul, na medida em que sua tradição revela que os preceitos da democracia, da República, lhe são muitos caros. Embora não haja uma atuação específica relacionada às atividades dos jornalistas, nós somos membros do processo político brasileiro, emitindo notas, emitindo opiniões, que dizem respeito à salvaguarda desse interesse maior que é o de exaltar a liberdade de imprensa e a pluralidade de opiniões. Nós vivemos num mundo efetivamente polarizado, é preciso sempre cuidar os extremos, visto que eles nunca são bons, e, portanto, nossa preocupação é de garantir um espaço de diálogo democrático, em busca de algum consenso possível. É necessário, no Brasil, que as pessoas voltem a dialogar e a respeitar a divergência, porque ela é natural, a fim de trilharmos pacificamente um ambiente em que ideias variadas possam ser expostas, evitando o extremismo, porque muitas dessas visões extremas não podem ser aceitas. O discurso de ódio não pode ser aceito, as mentiras, as fake news, nada disso pode ser justificado. Porém, a dualidade ou a diversidade de opiniões sim, uma vez que compõem um ambiente democrático saudável.

“Efetivamente, manifestações sexistas, manifestações racistas, homofóbicas e contra determinados grupos étnicos não compõem o escopo da liberdade de expressão, até porque há dispositivos no próprio Código Penal que incriminam a calúnia, a difamação e a injúria”


Mescla: No início deste mês, a nossa ainda recente Constituição Federal completou 32 anos. De que forma a nossa Constituição protege a liberdade de imprensa e a liberdade de expressão? Há maneiras de se incrementar essa proteção?

Orlando Faccini Neto: A Constituição consagra a liberdade de imprensa e isso foi reafirmado fortemente pelo Supremo Tribunal Federal quando extirpou a legislação que regulava essa atividade, numa votação histórica, e o Supremo nesse tema tem atuado com vigor, na tutela da liberdade de opinião, na tutela da liberdade de imprensa e na tutela da liberdade de expressão do pensamento. Porém, é necessário cuidarmos sempre da veracidade das informações, na medida em que hoje, no universo das redes sociais, se a informação não for bem verificada, ela pode efetivamente destruir reputações. Por isso, quando isso acontece, é necessária uma imprensa investigativa e que não seja mera adepta de determinados órgãos estatais de investigação e interesses políticos, porque na política muitas vezes também se trabalha com a tentativa de destruição da credibilidade do outro. Efetivamente, manifestações sexistas, manifestações racistas, homofóbicas e contra determinados grupos étnicos não compõem o escopo da liberdade de expressão, até porque há dispositivos no próprio Código Penal que incriminam a calúnia, a difamação e a injúria. Há, por exemplo, nos Estados Unidos e em alguns países europeus, destacadamente a Alemanha, organizações bastante radicais e que defendem ideias que se formam completamente anacrônicas e que violam o interesse de alguns grupos muito específicos. E há discussões jurídicas muito fortes sobre saber-se se esses discursos estão ou não abrigados no que concebemos como liberdade de expressão. Essa é uma discussão que me parece crucial e algumas vezes desemboca em processos judiciais. Há pontos de vista relativamente diferentes sobre o modo como o Judiciário atua nesses casos. Para alguns, os juízes só devem atuar em momentos posteriores, ou seja, não interditarem a manifestação de todo e qualquer tipo de pensamento, e há aqueles que entendem a possibilidade de certos discursos ou de certas opiniões serem mesmo impedidas por atuação judicial. Esse é um tema difícil, mas a mim me parece, e digo isso sem medo, que, se um magistrado, sabe que no dia de amanhã uma publicação de caráter manifestamente racista pretende se realizar divulgando, por exemplo, folhetos, cartazes ou alguma espécie de jornal em algum lugar, pode, sim, o magistrado interditar tal publicação, porque a defesa do racismo é absolutamente inaceitável em democracia, de maneira que se trata de uma ideia que simplesmente não pode ser expressada. No campo de liberdade expressão, a infâmia, a ignomínia, o preconceito grotesco e vil, não estão inclusos.

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