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Artistas são agredidos em protesto contra governo no Festival de Gramado
"Apoiadores do presidente jogaram pedras de gelo e restos de alimentos nos manifestantes."
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Eram 20h45min da noite de sábado (24) quando artistas, cineastas e entidades do audiovisual iniciaram sua passagem pelo tapete vermelho da 47º edição do Festival de Cinema de Gramado. Seguravam cartazes de filmes nacionais como Bruna SurfistinhaAmor Maldito e O Auto da Compadecida e juntos gritavam: “Pelo cinema, pela cultura, por uma arte livre e sem censura”. Os protestos eram direcionados ao governo de Jair Bolsonaro (PSL), que vem tomando um posicionamento de embate com o setor audiovisual.

Enquanto realizavam o trajeto manifestando-se em defesa do cinema, da diversidade e da Amazônia, ouviram vaias vindas dos bares que ficam próximos ao tapete vermelho, sendo atacados com pedras de gelo e restos de alimentos. “O público automaticamente começou a vaiar toda a nossa passagem, jogou pedras de gelo, copos, restos de macarrão. Me acertaram com um limão”, conta Daniela Strack, presidente da Associação Profissional de Técnicos Cinematográficos (APTC).

Junto dela estava Rogério Rodrigues, presidente do Sindicato da Indústria Audiovisual (SIAV-RS), que teve o nariz cortado ao ser atingido por uma pedra de gelo e só percebeu o corte com o sangramento. Enquanto jogavam comida e pedras de gelo, os opositores do manifesto gritavam “mito”. Para Rogério, a violência sofrida não foi um acaso, mas uma extensão das declarações do presidente da República. “O fato é que produtores, diretores, artistas, credenciados ao evento e, portanto, legítimos de estarem naquele local, fizeram uma manifestação pacífica a favor da cultura”, afirma.

Artistas e cineastas reivindicaram o direito a liberdade de expressão no tapete vermelho. Foto: Vicente Moreno

No domingo anterior (18), quando o filme Só sei que foi assim foi eleito vencedor da mostra de curtas gaúchos, artistas já haviam se reunido para protestar. Segundo Daniela, o primeiro manifesto envolveu o setor do audiovisual gaúcho, enquanto no sábado o ato teve uma dimensão nacional, reunindo artistas como o ator argentino Leonardo Sbaraglia, que recebeu o Kikito de Cristal do festival. A organização do evento lançou uma nota de repúdio à violência. Leia abaixo:

“A cidade de Gramado e o Festival de Cinema têm uma história sólida, de fortalecimento e crescimento mútuo. São 47 anos ininterruptos de encontros que trazem à cidade atores, produtores e público do Brasil e América Latina para as mostras, os debates e outras atividades paralelas ligadas à cultura cinematográfica e ao mercado do audiovisual.

Os dias em que acontece o Festival também mobilizam atividades paralelas, festas e shows, reforçando a vocação turística da cidade. O último fim de semana do Festival é particularmente concorrido, enchendo a cidade de diferentes públicos, entre cinéfilos e pessoas que buscam outros eventos. Todos são bem-vindos e o tapete vermelho do Festival é democrático.

Os espaços em seu entorno são públicos e de livre circulação. Servem de atrativo para os que apenas querem ver artistas e também para os profissionais do audiovisual que acreditam na importância e na história do mais antigo e respeitado Festival de Cinema do Brasil. Conviver com esta diversidade de motivos e desejos para estar na cidade é democrático e fundamental para a harmonia de tudo e todos.

Como sempre fez em sua tela, o Festival de Cinema de Gramado acolhe, contempla e evidencia diferentes estéticas e opiniões, sendo historicamente um espaço para debates e manifestações. O que não se pode admitir é a violência como prática ou resposta a ideias e opiniões diferentes. Só a tolerância e o respeito seguirão fortalecendo a história da cidade, do festival, reforçando e saudando o convívio de todos”.

O presidente e o cinema nacional

As manifestações que ocorreram no Festival são consequência de uma série de medidas adotadas pelo presidente nos últimos meses. Em julho, Bolsonaro anunciou a ideia de transferir a Agência de Cinema Nacional (Ancine) do Rio de Janeiro para Brasília, com o intuito de monitorar a produção cinematográfica brasileira. “A cultura vem para Brasília e vai ter um filtro, sim. Já que é um órgão federal, se não puder ter filtro, nós extinguiremos a Ancine. Privatizaremos ou extinguiremos. Não pode é dinheiro público ser usado para fazer filme pornográfico”, disse o presidente, referindo-se a Bruna Surfistinha, que conta a história de Raquel Pacheco, uma jovem garota de programa.

Na quarta (21), o atual presidente da Ancine, Christian Castro, participou do encontro do Gramado Film Market, parte da programação do Festival de Cinema de Gramado. Na ocasião, disse ao público que a suspensão de um edital de projetos audiovisuais para emissoras de televisão pública era “Um convite ao diálogo”. Bolsonaro havia criticado algumas produções do edital, como o filme Afronte, e declarou:

“Olha, a vida particular de quem quer que seja, ninguém tem nada a ver com isso, mas fazer um filme mostrando a realidade vivida por negros homossexuais no Distrito Federal não dá para entender. Então, mais um filme aí que foi pro saco, aí. Não tem cabimento fazer um filme com esse enredo né?”.

O professor do curso de Realização Audiovisual da Unisinos Vicente Moreno conta que as ações do presidente são preocupantes e pergunta que tipo de cinema ele pretende fazer. “Seria o dos heróis nacionais?”, ironiza. Vicente fez a montagem do filme Raia 4, de Emiliano Cunha, que levou os prêmios de melhor fotografia, júri da crítica e melhor longa-metragem gaúcho.

“O que estamos vivendo no Brasil é censura. Não tem outro nome. No momento em que o presidente cancela um edital por incomodar-se com o conteúdo de um projeto contemplado, no caso sobre a população LGBT, isso é censura”, diz Vicente. Para ele, o filtro de conteúdo que o presidente quer impor se aproxima daquilo que se viveu no período da ditadura militar.

Vicente também foi alvo das pedras de gelo arremessadas por apoiadores de Bolsonaro, mas afirma que o que se viu em Gramado irá continuar e se multiplicar: “Mesmo que tenhamos que enfrentar mais hordas de desinformados e seu gelo arremessado. O gelo pior está na alma, e a nossa está bem acesa”.

Para Rogério Rodrigues, o Brasil vive seu melhor momento na produção audiovisual, seja para TV ou cinema, tanto em quantidade como em qualidade. “O setor tornou-se uma indústria que representa 0,5% do PIB e com uma qualidade reconhecida pelos resultados alcançados nos festivais internacionais de cinema. As empresas do setor, além de pagarem todos os impostos, como qualquer outra empresa, pagam a Condecine, tributo criado para desenvolver o setor, portanto é a própria indústria que se retroalimenta” conta.

O presidente do SIAV também diz que as declarações de Bolsonaro ameaçam um setor em pleno desenvolvimento com interesses alheios ao Brasil. Considera importante se manifestar, pois a arte é inclusiva, assim como a cultura é necessária à educação e à formação da identidade cultural brasileira.

Durante a cerimônia de premiação do Festival de Cinema de Gramado, as entidades APTC, SIAV IECINE leram uma carta aberta dos secretários de cultura de 22 estados. Veja:

Outra carta assinada por entidades do audiovisual foi lida por Miguel Falabella no palco do Festival.

No palco, artistas do filme Veneza de Miguel Falabella se reúnem para a leitura da Carta de Gramado. Vídeo: Pam Hauber

Serviço

Esta matéria foi originalmente publicada no site da Beta Redação, na disciplina de Laboratório de Jornalismo – Editora de Cultura, Educação e Tecnologia do curso de Jornalismo. Confira a matéria original e outros trabalhos.

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