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Hermenegildo: por dentro do documentário
"A história que juntou três profissionais da área audiovisual para a produção de um documentário que revisitou a tragédia ambiental de 1978 ocorrida na praia de Hermenegildo"
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Voltemos no tempo. Imaginem que a reportagem se passou em 1978, quando o Brasil vivia a ditadura de Ernesto Geisel, penúltimo militar a governar o país antes da redemocratização. Na praia gaúcha de Hermenegildo, em Santa Vitória do Palmar – perto da fronteira com o Uruguai -, uma quantidade enorme de mariscos foi encontrada morta. A tragédia ambiental envolvia ainda inúmeros peixes desfalecidos. Corpos de leões marinhos também se estendiam sobre as areias.

O jornalista Marco Villalobos, à época repórter da RBS, foi um dos primeiros a chegar no litoral do extremo sul do país, junto do renomado ambientalista José Lutzenberger. Órgãos governamentais se instalaram em Hermenegildo para investigar a mortandade, e a pesca foi suspensa. Depois de alguns dias, animais maiores começaram a morrer: cachorros, cavalos, vacas. As pessoas tossiam ao se aproximar da praia, os olhos lacrimejavam e um “cheiro de amoníaco ou algo assim” tomava conta das narinas, segundo o então repórter. 

O relatório oficial conclui que se tratava da chamada maré vermelha: fenômeno que deixa o mar turvo, avermelhado, devido ao desequilíbrio na proliferação de algas. Além de mudar a pigmentação da água, o evento natural altera a oxigenação, matando os animais marinhos.

Zero Hora noticiou a divulgação do laudo do governo sobre a tragédia ambiental em Hermenegildo. (Imagem: acervo ZH)

Mas equipes técnicas que visitaram o local descobriram que não se tratava de um fenômeno da natureza. Havia uma substância tóxica que fazia mal quando inalada, nada relacionado a algas. Ao mesmo tempo, o naufrágio de um navio e os tonéis que surgiam sobre a areia, vindos do mar, colocavam em xeque a posição oficial. Era grande a possibilidade de não se tratar de um fenômeno natural. 

O que o governo perderia ao admitir o acidente? Não sendo as mortes de causa natural, a população afetada deveria ser compensada pelos militares. A dimensão da catástrofe ambiental (que, inclusive, alcançou o litoral uruguaio) traria despesas demais e complicaria a posição do Brasil frente aos países vizinhos.

Fotografia de Mario Poliseni registra o navio Taquari, naufragado próximo à costa de Santa Vitória do Palmar, em 1975
Técnicos utilizavam máscaras por conta da possibilidade de haver gás no ar, devido ao odor forte. (Imagem: O Globo)

Agora, voltemos ao presente. Cerca de 40 anos após o episódio, Marco volta à praia, não como repórter, mas como fio condutor do documentário Hermenegildo, que conta a história do ocorrido.

“Eu tinha a ideia de produzir. O que eu não queria, no primeiro momento, era ser o fio condutor. Pô, eu já fui repórter de TV. Só que, em alguns aspectos, sou um cara muito tímido. Mas eu fui convencido”, conta Marco.

Ele deu a ideia do documentário para a sua antiga colega profissional e amiga Daniela Sallet, que já possui em seu currículo outras produções documentais. Ao assistir a um de seus trabalhos, Marco procurou Daniela para conversar sobre o caso Hermenegildo. Ela topou, mas a condição para a realização do filme era ter o amigo como guia da história.

Daniela contou com a ajuda de Luise Bresolin, que cuidou da fotografia, do tratamento de cor e da finalização. “A gente já tinha trabalhado num especial sobre o Renato Borguetti. A Luise não é do jornalismo, ela é minha amizade e relação profissional do audiovisual”, lembra Daniela. Luise também esteve com Daniela em Substantivo Feminino, documentário produzido em 2017.

As duas inscreveram o projeto em um edital da Secretaria Estadual de Cultura, e conseguiram o financiamento. Assim, começava a tomar forma o que Daniela descreveu como “a história do primeiro jornalista a chegar no local e que volta à Hermenegildo pra pra buscar respostas, esclarecer pontos que não tinham sido elucidados”.

Daniela Sallet trabalhou na Bandeirantes e na RBS. Ela atua como apresentadora de eventos corporativos. (Imagem: Gabriel Ost)

No início, Marco temia o tom da história. “Bah, não podia ser assim ‘as aventuras de Marquinho 40 anos depois’. Acho que a Dani conseguiu acertar a mão”, comenta.

Primeiro, Luise e Daniela viajaram para realizar a pré-produção. Por cinco dias, buscaram residentes que vivenciaram o ocorrido na década de 70. Além disso, a dupla aproveitou para fazer contato com prefeituras, restaurantes e hotéis com o objetivo de planejar a viagem de gravação.

Elas visitaram os municípios de Santa Vitória do Palmar, Rio Grande, Pelotas e Cabo Polonio, no Uruguai. Apesar do edital não permitir nenhuma outra fonte de arrecadação, foi possível conseguir algumas parcerias, como hospedagem, alimentação e transporte.

“O projeto do documentário passou no edital do Fundo de Apoio à Cultura, que não é específico de audiovisual. Então, envolvia produção de peças de teatro, e uma parte do edital era dedicado à circulação de obras ou de projetos que já existiam. Era um edital bastante amplo em termos de projetos possíveis a serem realizados. Por ele não ser específico do audiovisual, os recursos não eram grandes, eram bastante baixos para produzir um filme. Por isso, foi muito importante a gente ir antes e conversar com esses órgãos e possíveis apoiadores para viabilizar realmente a produção do documentário”, explica Luise.

Marco e Daniela se dividiram nas pesquisas e revisaram juntos o roteiro (umas dez vezes). Terminada a pré-produção, com tudo pronto para iniciarem as gravações, surgiu um problema: a alta temporada nas praias. “Seria difícil filmar com o local cheio de turistas. Não seria uma coisa muito condizente com a época do ocorrido”, avalia Daniela. A ideia era mostrar imagens que se parecessem com a praia em 1975, quando ocorreu o incidente, com as mesmas condições. Por isso, as gravações foram remarcadas para logo após o Carnaval. Elas duraram quatro dias, tanto em Hermenegildo quanto no Uruguai.

“Outra coisa importante foi ficar de olho na previsão do tempo”, alerta Luise. Grande parte da captação era externa A equipe chegou a planejar uma data para a viagem, mas transferiu devido a chuvas intensas no litoral. A cidade ficou quase uma semana sem luz. “Ainda bem que a gente não foi, porque, se não, teríamos perdido tudo”, acredita.

Moradores entrevistados por Marco contaram detalhes do que viveram durante a tragédia ambiental (Foto: acervo pessoal)

“Um roteiro é escrito, um parecido é filmado e outro roteiro é mostrado no final da montagem. Tu não podes engessar, como uma ficção, de jeito nenhum”, ensina Daniela.

Durante o período de gravação, diversos contratempos podem ocorrer. Um pneu furado ou um entrevistado que não aparece podem atrasar as filmagens. Por ser um documentário aprovado por edital, existe um prazo de entrega do trabalho. Isso fez com que a agenda da equipe ficasse justa, necessitando de soluções rápidas para qualquer um desses problemas que pudessem ser enfrentados.

“A gente tinha planejado finalizar o projeto em cinco meses. Só não conseguimos por causa da temporada de Verão. Não que a gente tenha ficado parado, fizemos gravações em Porto Alegre, com pessoas que moram aqui, que participaram do fenômeno. Mas teria sido possível a gente fazer em cinco meses. Parte disso é por exigência do edital, outra parte é pelos baixos recursos que a gente tinha. Quanto mais o projeto se arrasta, menos viável ele fica, com poucos recursos. Então, a gente precisava fazer uma coisa bem organizada, bem planejada, para que os recursos fossem suficientes para realizar o projeto”, conta Luise.

Luise também se aventura no mundo da moda e da gastronomia como diretora, diretora de fotografia e pós-produtora. (Imagem: Gabriel Ost)

A equipe destaca que o planejamento foi fundamental para conseguirem terminar o filme. Luise conta que as gravações foram bastante leves. “Acho que isso é devido a essa organização. Todo mundo cumpriu seus prazos, ninguém teve que fazer nada na correria. Tudo foi feito conforme o combinado, porque foi um planejamento realista também, pensado para ser realizado na forma que podíamos”, diz. Diversas gravações feitas na primeira viagem não precisaram ser repetidas, poupando tempo de produção.

Marco lembra a diferença nas produções. “A gente tem que distinguir duas coisas: existe a produção de conteúdo, que é importantíssima, e a produção de administração, execução e logística”.

Além do planejamento, Luise ressalta a agilidade dos jornalistas Marco e Daniela para resolverem situações imprevistas. Cita, como exemplo, o problema que tiveram com a captação de imagens de uma boiada na beira da praia. “As tropas são movimentadas na beira da praia porque lá tem essa característica, das grandes fazendas terminarem na beira da praia. Tínhamos um turno para fazer essas gravações. Percebemos que existiam dois quilômetros entre a fazenda e o mar. Nos demos conta que não daria tempo de chegar com a tropa até a praia”, lembra.

Foi aí que a diretora teve a ideia de gravar a tropa onde estava, longe da costa, e gravar apenas os cavalos correndo na praia. “Isso foi pensado para ficar bem encaixado na edição. Não foi uma coisa resolvida na edição, foi pensado lá na hora, com muita rapidez”, acrescenta Luise.

Tropeiros participaram de cenas para o documentário. (Foto: acervo pessoal)

Com quantas câmeras se faz um documentário?

Os equipamentos usados foram duas câmeras Alpha, da Sony, modelo a7S II, e um drone. Raro foi o momento em que utilizaram iluminação artificial, até pela maior parte do material ter sido captado em ambiente externo. “Em termos de fotografia, é algo bastante mais livre do que se fosse uma obra de ficção. Um documentário a gente tem que trabalhar muito com o que se depara no momento. O plano era chegar lá e rapidamente ter o olhar da diretora de como resolver aquela cena”, revela Luise.

O documentário foi gravado em 4k, com saída full hd. (Foto: acervo pessoal)

As imagens foram gravadas em 4k, com saída full hd, permitindo a gravação das entrevistas com uma câmera apenas. “Isso possibilitou captarmos muitas entrevistas com uma câmera só e, depois, utilizar o recurso de ajuste de aproximação para os cortes nas falas dos entrevistados”, explica Luise. Essa medida auxiliou na otimização do tempo, permitindo que a equipe se dividisse durante as gravações em Cabo Polonio.

Saber quando o material filmado é suficiente pode ser difícil. Para Daniela, acompanhar a evolução dos roteiros é essencial. “Fomos com o roteiro muito bem alinhado. Confirmamos todas as gravações e notamos que tinham até, em alguns casos, imagens extras para fazer”, conta.

Segundo Luise, esse assunto não se esgota, mas é necessário dar um fim à produção em certo momento. “O mesmo vale para montagem. Pode se tornar um processo interminável, porque é muito difícil olhar e pensar que tá tudo cem por centro, sem ter nada o que mudar”, complementa.

Apesar disso, a ideia é produzir um longa com o restante do material e com o que ainda é possível conseguir. “Agora vamos em busca de parcerias, de recursos. Esse filme tá com 42 minutos e a gente ainda tem assunto, temos muito mais a investigar e ampliar as respostas que a gente busca pra esse episódio”, revela Daniela.

Daniela (esquerda) e Luise exibiram o documentário na Cinemateca Paulo Amorim. (Foto: reprodução/Facebook)

Um dos motivos para não lançarem apenas o documentário, um média-metragem, é a falta de premiações e espaço na TV para essa categoria de filme. Por isso, estão fechando um curta com o mesmo tema, porém, sem entregar tanto do recheio da história. A exibição do filme ocorreu na metade desse ano, nas cidades de Porto Alegre, Santa Vitória do Palmar, Hermenegildo e Cabo Polonio.

O documentário teve legendas em espanhol e versões de acessibilidade, que contempla audiodescrição (narração que contextualiza o que acontece na tela quando não existe fala), para o público cego, e legenda descritiva e tradução em libras, para surdos.

“Eu acho muito legal essa questão da acessibilidade. Eu nunca tinha visto, honestamente falando, mas fiquei muito comovido. Na apresentação, em Santa Vitória do Palmar, tava um frio que tu não imaginas. Lotou o Hermenegildo Praia Clube, uma sociedade local. Então, tinha muita gente, pessoas já de alguma idade, moradores e duas ou três escolas das redondezas. Aí, eles levaram acho que duas ou três moças cegas. Cara, quando terminou a apresentação, a gente sempre abre para o pessoal comentar, discordar, gostar, um debatezinho, e foi muito legal ver a alegria de uma dessas moças, que disse: ‘eu queria agradecer vocês porque eu consegui assistir ao filme’. Bah, eu me arrepiei. Se não tivesse dado nada de bom, isso aqui já bastava”, conta Marco.

Marco já atuou como professor na Unisinos e PUCRS. (Imagem: Gabriel Ost)

Luise também se emocionou com a espectadora. “Ela dizia que não gostava de filme, porque ela não conseguia entender, e aquele ela gostou. De repente, a gente plantou nela uma sementinha de ir atrás de filmes assim, com audiodescrição, e começar a gostar de filmes”.

As versões de acessibilidade se tornaram obrigatórias há pouco tempo, e o que ocorre frequentemente, segundo Luise, é o engavetamento dessas versões pelas produtoras, por julgarem não ter público para consumir. “Realmente, é um trabalho que fica bastante interessante, porque tu consegues enxergar e escutar a descrição, vê que não é literal, mas vê que é feito muito bem pensado para esse público entender e contextualizar”, completa Luise.

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