Especial

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Deu um branco no jornalismo
"A imprensa, assim como outros setores da sociedade, é, em sua maioria, branca e heteronormativa. Consequentemente, tende a diminuir ou invisibilizar narrativas que agendam a diversidade, dentre elas, a racial. É importante colocar esse assunto em pauta para que não esqueçamos da nossa história"
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O Brasil é o segundo país em população negra do mundo, atrás, apenas, da Nigéria. Mais da metade dos brasileiros são pretos ou pardos. Mesmo assim, padecemos de um racismo que é estrutural, uma intolerância tão forte e enraizada que impede a representatividade negra, especialmente nos ambientes de poder. Fomos o último entre os países da América Latina a abolir a escravatura, por exemplo, e as leis que vieram pós-Lei Áurea não tem ajudado a mudar esse cenário. 


Por trás do racismo, nem sempre explícito, há um processo histórico de branqueamento, ou seja, uma tentativa de embranquecer o país e o mundo, baseada em matrizes eurocêntricas, conforme explicou aqui a pesquisadora e coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (Neabi) da Unisinos, Adevanir Aparecida Pinheiro.


As práticas de branqueamento têm promovido um apagamento da cultura e referências negras, e isso reflete também na pouca presença negra nas redações jornalísticas, incluindo o próprio Mescla. Por mais que a diversidade seja uma pauta presente nas nossas discussões, não temos repórteres negros. O curso de Jornalismo, inclusive, é composto por estudantes brancos, em sua maioria. Há muitas formas de entender como essas práticas de branqueamento se disseminam e perpetuam, e uma delas é ouvir histórias de jornalistas negros, em diferentes fases da carreira, conhecer as experiências individuais de cada um sobre como se enxergam neste contexto e que horizontes vislumbram. 


Uma profissão em extinção?


Em janeiro deste ano, Glauber Cruz se formava em Jornalismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A formatura aconteceu no mesmo mês que diversos ataques foram feitos a jornalistas pelo Presidente da República. Entre eles, o de que eram uma raça em extinção. Se ser jornalista pode ser complicado, imagine trabalhar em locais onde você é minoria. Natural de Alegrete, município localizado no Oeste do Estado, Glauber chegou a Porto Alegre em 2015 para estudar. Foi crescendo que descobriu que, no Brasil, os espaços são ocupados por cores. “É violentamente simbólico entrar na redação e só ver repórteres brancos”, explica. O simples fato de ser o Glauber jornalista e negro já o deixa distante dos colegas brancos.

Glauber Cruz: “Quanto mais negros, mais olhares,
é isso que torna o jornalismo tão rico”

(Foto: Arquivo Pessoal / Glauber Cruz)


As narrativas jornalísticas não deveriam ser contadas pela perspectiva de um único grupo – com visões e experiências similares. A diversidade ajudaria a fazer com que as histórias cheguem a todos. “Quanto mais negros, mais olhares, é isso que torna o jornalismo tão rico”, comenta Glauber.


Durante a formação de Glauber, ele pode perceber mais negros estudando Jornalismo. Atualmente, o jornalista trabalha na RBS TV como editor de imagem para o Jornal do Almoço. Ele conta que tem colegas negros na redação, mas a maioria não ocupa espaços visíveis para os telespectadores. “Tem que ter uma proatividade dos gestores em contratar pessoas negras”, explica. Glauber sempre reforça que os estudantes e jornalistas negros têm realidades diferentes dos demais colegas brancos. Portanto, acrescentar essas experiências às pautas e narrativas torna o jornalismo mais rico e próximo da população.


“As pessoas ‘de cima’ têm que pensar nisso, mas não fazem isso naturalmente, porque são brancas”, comenta. Para o jornalista, algumas ações podem ser tomadas para visibilizar a questão racial. Entre elas, ouvir as pautas sobre invisibilidade racial e agendar isso na instituição.


Foi crescendo e frequentando espaços que ele percebeu o racismo. Glauber não separa o jornalista do militante e acredita que o movimento negro é uma necessidade. “Eu não penso só em mim, penso nas pessoas ao meu redor. Não posso ficar parado, tenho que fazer alguma coisa”, conta o jornalista que persiste em uma profissão que está longe da extinção.


Um corpo estranho


“É impossível separar ser jornalista de ser jornalista negro. O jornalista negro vem primeiro”, conta Bruno Teixeira. Em 2017, se formou na UFRGS e, hoje, trabalha como produtor na Rádio Gaúcha. O jornalista integra o coletivo MilTons já retratado pelo Mescla. Ele cresceu ouvindo piada racista e sendo instruído a sempre sair de casa com o documento de identidade. Morando no Belém Velho, Zona Sul de Porto Alegre, trabalhava em uma rádio no bairro. A relação com o jornalismo é “de casa”, já que os pais sempre foram ligados com o rádio e a TV.


Bruno relata que jornalistas negros estão presentes, mas de forma minoritária e, às vezes, são vistos como um “corpo estranho”. A diversidade, de forma geral, acontece, mas nem sempre essas pessoas estão na linha de frente dos veículos. Para o jornalista, é preciso trabalhar e dialogar com estudantes, ainda na universidade, e dar espaço para discussões maiores sobre a questão racial. Além disso, Bruno acredita que é necessário uma política maior com os RHs (departamentos de recursos humanos), mostrando que existem pessoas negras trabalhando naqueles ambientes.

Bruno Teixeira: “É preciso formar imaginários. Os negros
também são médicos, também são jornalistas”

(Foto Arquivo Pessoal / Bruno Teixeira)


A invisibilidade da questão racial vai além das contratações nos veículos de comunicação. Glauber e Bruno concordam que a pauta antirracista chegou ao Brasil distorcida e diluída. “Virou uma coisa só. Enquanto a luta racial não for o xis da questão, não vai para frente. O negro fica em último plano”, explica Bruno. Além disso, ele comenta que os profissionais negros só são lembrados, pela maioria das pessoas, em momentos como manifestações ou em datas específicas, como a da Consciência Negra. Segundo Bruno, as redações precisam montar agendas de contatos e chamar negros para serem fontes não apenas em entrevistas temáticas ligadas à negritude e ao racismo. Esse exercício tem que ser diário, para trazer fontes diversas. “É preciso formar imaginários. Os negros também são médicos, também são jornalistas”, completa.


Coisas da imaginação


Há 26 anos, Chico Izidro entrava na redação do Correio do Povo como repórter. Com 9 anos, criou, com os amigos, um jornal sobre o dia a dia da escola, e foi ali que se tornou jornalista. Mas o diploma mesmo só chegou em 1991, pela Unisinos. “Ser jornalista é muito do amor, dedicação e paixão que vem com a pessoa”, explica. Já aos 12 anos, se percebeu negro, quando, ao observar uma menina que gostava, a mãe dela o atacou na rua dizendo que mataria a filha antes dela namorar um negro. Chico conta que se questionou, sozinho, em casa, o que teria feito para que aquela mulher sentisse tanto ódio.


“Tem muito racismo implícito. Já ouvi de muitos colegas que é coisa da minha imaginação, mas não é”, relata. Chico conta que divide a redação com cerca de cem colegas. Desses, apenas quatro são negros. Raramente um jornalista negro vira editor. “Não sei se as pessoas não se tocam, se não veem que falta representatividade negra nas chefias”, comenta.

Chico Izidro: “Queria que tivesse mais diversidade,
mais mulheres editoras, por exemplo”

(Foto: Arquivo Pessoal / Chico Izidro)


Chico conta que os ataques pela cor da pele o acompanham desde sempre, e não acabaram quando se tornou jornalista. Um dos últimos foi neste ano, um pouco antes do início da quarentena, e promovido por um colega. O caso ocorreu em uma confraternização com outros jornalistas após cobrir a Expodireto. Em um determinado momento, Chico diz ter se confundido com as teclas do controle da televisão e acabou a desligando. A agressão veio em seguida: “É o que dá deixar um negro no controle, só faz merda”, dizia o colega para todos os presentes. Chico conta que nenhum colega interveio na cena. E, mais tarde, quando quis denunciar o ato, acabou sendo desencorajado. Apenas um dos colegas presentes se dispôs a ser testemunha da agressão sofrida pelo jornalista. Chico era o único negro da confraternização. 


“As pessoas acham que não existe racismo, que somos todos iguais e felizes”, critica o jornalista ao falar dos ataques que sofreu e relembrando dos jovens negros que morrem todos os dias no país. Segundo ele, a própria mídia não destaca o que acontece no Brasil. Quando pautas raciais são sugeridas nas redações, grande parte delas não vai para frente. “Para que se incomodar?” é a resposta frequente dos editores. “A coisa tá bem mais legal, mas ainda tem poucos negros na redação”, explica. No Correio desde os anos 1990, Chico viu várias mudanças acontecendo na redação, como o aumento de mulheres e de LGBTs. Mas, para o jornalista, isso não é o bastante. “Queria que tivesse ainda mais diversidade, mais mulheres editoras, por exemplo”, comenta.


Chico diz já ter sido confundido como guarda de trânsito e até taxado de assaltante. Porém, quando as pessoas descobrem que ele é jornalista, as atitudes mudam. “Eu ando sempre de crachá, porque, quando a Brigada Militar dá batida no ônibus, eles olham pro crachá e já não tocam mais em mim. Ser jornalista te dá respeito e credibilidade”, avalia.


Expor para transpor


No início deste ano, a portoalegrense Fernanda Carvalho se tornava a primeira jornalista negra a estar na bancada do RBS Notícias. Além disso, está na equipe de reportagem do Jornal do Almoço e do Bom Dia Rio Grande. A trajetória da jornalista começou quando, há cerca de 12 anos, ela se formou em Brasília e voltou à Capital gaúcha. Aqui, ela criou o blog “Em negrito” para falar sobre a negritude – após um episódio no qual uma amiga fez um comentário racista sem perceber. A partir disso, foi convidada para cobrir o primeiro carnaval que a TVE produziu e, um tempo depois, já estava apresentando o Nação – programa que tratava de temas relacionados à história africana, focando na contribuição da população negra na cultura do Estado.

Fernanda Carvalho: “É preciso entender que não
são problemas pontuais, que é estrutural”

(Foto: Arquivo Pessoal / Fernanda Carvalho)


Fernanda conta que, por ter ficado conhecida muito rápido, não passou por nenhuma situação na qual não era vista como jornalista por ser negra. Mesmo assim, não impediu que as pessoas destinassem lugares para ela: o de falar apenas sobre a negritude. “Entrei na RBS e escutei que ia entrar no lugar da Carol (Anchieta), assim como a Carol escutou que entrou no lugar do Manoel (Soares)”, comenta. Algo que também costuma seguir Fernanda são as comparações. Desde que apareceu no RBS Notícias, é chamada de “Maju do Sul”. “A Maju é a Maju e eu sou eu. Eu não me importo, mas isso demonstra como a branquitude nos enxerga como uma coisa só”, explica.


Fernanda sempre soube a história do negro. Por estar sempre inserida em “espaços brancos”, a jornalista e a irmã foram ensinadas, pelos pais, a se defenderem. “Isso nos tornou mulheres muito fortes”, conta. A partir disso, a participação de Fernanda no movimento negro foi natural. “Eu não tinha bagagem acadêmica, eu falava do que me incomodava. Foi um processo interno para entender a minha importância no movimento, agora eu tenho isso muito claro… muito escuro, né”, brinca.


A jornalista entende que sempre cobrou por representatividade no blog que mantinha, e acabou ela sendo a manifestação dessa necessidade social nos veículos durante o período que apresentou o Nação, na TVE – mesmo que o assunto fosse a negritude – e na RBS. “Chega a ser engraçado, eu nunca imaginei que seria a representatividade, mesmo cobrando isso”, conta. Fernanda recebe elogios e eles sempre falam da competência da jornalista. Ela lembra, porém, que não é mais competente do que os outros que vieram antes dela. Ela teve, apenas, mais oportunidades. Fernanda explica que está vivendo um momento muito especial. “As pessoas brancas estão vendo que a diversidade é enriquecedora para todos”, explica. Ser jornalista hoje, segundo Fernanda, é ser uma ponte entre as coisas e quem precisa de informação. Ela conta que a oportunidade de ter passado em um concurso público (TVE) proporcionou mais diversidade na redação, deixando-a um pouco mais próxima da sociedade, por conta da política das cotas raciais. “Mas sempre somos o pontinho preto na produção e na redação, menos quando o assunto é negritude”, completa.


Mesmo que agende temas ligados à negritude, Fernanda diz que tenta manter o olhar aberto para as pautas. “Eu escolho o que eu faço e o que é ‘notícia para todo mundo’ e pode ser feito por jornalistas brancos”, explica Fernanda, lembrando que precisa fazer um balanço dentro da militância, não esquecendo que é uma pessoa como qualquer outra e tem que se preservar. Para a jornalista, a primeira ação a ser tomada é abrir oportunidades para profissionais nas redações. Depois, é preciso admitir que o racismo existe e que ele é um problema social. “Não tratamos as mortes de jovens negros brasileiros como tratamos as de fora”, complementa.


O jornalismo tem uma importância imensa para mudar o cenário atual, segundo Fernanda. “Temos que denunciar, mostrar, dar nome, dizer que é um problema da sociedade. É preciso entender que não são problemas pontuais, que é estrutural”, explica. A jornalista conta que falar sobre o racismo não é pesado para ela, que é preciso expor para transpor. “Só falando sobre isso é que vamos entender”, completa.

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