Se você é estudante de Jornalismo já deve ter ouvido falar de Nelson Traquina. O pesquisador é um dos teóricos mais referenciados nos estudos de Jornalismo no Brasil e em Portugal. O que pouca gente sabe é que ele nasceu nos Estados Unidos, filho de imigrantes açorianos.
Traquina deixou um legado para muitos pesquisadores, professores e jovens jornalistas, fruto de uma trajetória profissional de mais de 40 anos. Em 1974, mudou-se para Portugal e começou a trabalhar a serviço de uma agência norte-americana de notícias, a UPI (United Press International).
Depois, foi professor na Universidade Nova de Lisboa, integrante do Departamento de Ciências da Comunicação (DCC) e fundador do Centro de Investigação Media e Jornalismo. Em 2012, durante um congresso de história do jornalismo na cidade de Lisboa, o jornalista e professor da Unisinos Everton Cardoso teve a oportunidade de conhecer e entrevistar Traquina. Everton estava lá para apresentar sua dissertação, na qual estudou a noção de cultura no Caderno de Sábado, suplemento cultural do Correio do Povo entre 1967 e 1981.
A ocasião era especial: a última conferência de Nelson Traquina antes de se aposentar e voltar a morar nos Estados Unidos, com a família. O professor de jornalismo da Unisinos conta que foi Traquina quem traduziu para nossa língua textos de referência dos estudos de jornalismo. Jornalismo: Questões, Teorias e “Estórias” é um livro que reúne esses textos. Esgotado na edição portuguesa, foi recentemente editado pela editora Insular.
O livro Pesquisa em Media e Jornalismo – Homenagem a Nelson Traquina – organizado por Isabel Ferin Cunha, Ana Cabrera e Jorge Pedro Sousa – apresenta 12 artigos que refletem o legado e influência do teórico. “Ele foi responsável pela principal cronologia das teorias do jornalismo, que busca aglutinar e organizar o conhecimento sobre a área. Isso sem falar na compilação dos valores-notícia que ele nos ofereceu”, destaca Everton.
O encontro de Everton com Nelson Traquina foi rápido: “Numa brecha durante a programação do congresso, em uma sala da universidade. Foi algo do tipo protocolar acadêmico. Inclusive, tivemos que interromper a entrevista porque ele tinha outros compromissos no congresso”, conta o jornalista tentando lembrar de um fato que ocorreu há sete anos. Mesmo em um tempo distante, Everton não esquece: “Era sem dúvida a pessoa mais requisitada do evento”, conta.
Confira a entrevista completa, publicada originalmente no Jornal da Universidade (UFRGS):
“Jornalistas devem lutar pela liberdade sempre”
Professor e pesquisador revisa sua trajetória e avalia o atual panorama do ensino e da prática do jornalismo
Se houvesse um levantamento para saber qual é o autor mais referenciado nos estudos em jornalismo no Brasil, o nome do português Nelson Traquina certamente estaria em uma das primeiras posições. Isso se deve ao fato de ter produzido diversas obras que apresentam discussões teóricas acerca da profissão que escolheu, mas que abandonou por achar demasiado superficial. No ímpeto de refletir sobre essa prática e de contribuir para melhorá-la é que foi pioneiro tanto nas investigações quanto no ensino do ofício em Portugal. Desde o final de 2011, depois de três décadas de atuação, Traquina está aposentado e vive nos Estados Unidos, seu país natal, para estar próximo de sua família. Em entrevista exclusiva ao JU, o pesquisador fez um balanço de sua carreira e de seu legado, avalia o jornalismo e a formação de futuros profissionais, e aponta o principal papel social da instituição dedicada à difusão de notícias e informação: a defesa da liberdade e democracia.
Como teve início sua trajetória como pesquisador em jornalismo?
Nasci nos Estados Unidos, mas tive a felicidade de estar em Portugal em 1974, época da Revolução de Abril. Tinha chegado ao país em janeiro daquele ano. Portugal, nesse período, vivia sob a ditadura, e esse acontecimento foi uma surpresa para mim. Não sabia por que havia acontecido aquele golpe de Estado; mais tarde, enfim, me inteirei de que era a favor da liberdade e da democracia. Eu sempre quis ser jornalista e, portanto, fui à agência de notícias United Press International e ofereci os meus serviços. Trabalhei com isso durante cerca de três anos, mas depois fiquei insatisfeito com o trabalho jornalístico, achei que era muito superficial. Fui, então, à França, para fazer o doutorado, onde permaneci por três anos. Depois de seis anos sem ir aos Estado Unidos, acabei voltando para lá afim de ficar perto de meus pais. Estava difícil arrumar emprego no ensino naquele país, por conta disso decidi aceitar um convite para voltar a Portugal. Eu já recusara dois e achei que a oportunidade não surgiria mais uma vez. Isso foi em 1982, e nos 30 anos seguintes, dediquei-me integralmente a ser professor. Sempre digo aos meus alunos que o jornalismo é a segunda melhor profissão do mundo, porque a primeira é ser professor.
Que sentimento há depois desse percurso?
Estou evidentemente muito satisfeito com minha profissão. Tive alunos maravilhosos! Contribuí para a formação de uma nova geração de jornalistas e também de pessoas que mais tarde se tornaram professores de jornalismo feito eu. Isso é importante porque o futuro dessa prática profissional está na mão de pessoas graduadas e, em particular, daquelas formadas em ciência da comunicação e nas técnicas do jornalismo. Mas o ensino não deve ser voltado somente para estas, aliás, essa parte só deve corresponder a 25% do total! Muitas vezes os estudantes têm uma visão equivocada do jornalismo, só querem a prática.
Qual é a sua posição em relação à exigência de formação universitária para o exercício do jornalismo?
Sou crítico da posição do sindicato dos jornalistas de Portugal: foram reacionários e retrógrados nos anos 1980 e até hoje nunca disseram de uma forma clara que a melhor formação para um jornalista é a graduação em ciências da comunicação e jornalismo. Há dados empíricos que provam que as pessoas com formação universitária em jornalismo e em comunicação defendem mais a liberdade! Mesmo que vivamos em democracias, jornalistas devem lutar pela liberdade sempre!
O ideal, então, é possuir um diploma para ser jornalista?
Não sou a favor da obrigatoriedade da graduação em Jornalismo ou nas Ciências da Comunicação, ainda que seja necessário que todos os profissionais da área tenham uma formação sólida nas Ciências da Comunicação e no Jornalismo. O ideal, porém, é que os egressos da universidade sejam a grande maioria. É um processo irreversível e que está acontecendo em todo o mundo. Ninguém vai parar a história!
Qual é a postura ideal do profissional jornalista?
Primeiro, deve perceber que não sabe tudo. Deve ter humildade com qualquer pessoa, mesmo com aqueles que não são ‘senhor fulano’, ‘doutor fulano’. Também precisa estar disposto a aprender um pouco de tudo, pois nunca se sabe quando algo pode nos ser útil.
Em termos de linguagem, o que devem aprender os estudantes de jornalismo?
Eles precisam conhecer o poder das palavras, pois ela têm muito significado. A utilização de um vocábulo em vez de outro, por exemplo, muitas vezes não é por acaso, mas é preciso ter conhecimento para poder fazer isso. Também é necessário ter conhecimento histórico. O resto dependerá muito da área em que o profissional irá trabalhar. Outra tendência é que vai haver mais especialização ainda devido à evolução tecnológica; cada vez mais os jornalistas precisam ser multimídia. É por isso que na faculdade de jornalismo devemos ter uma disciplina obrigatória para aprender a aperfeiçoar a utilização de diversas técnicas a fim de construir a notícia segundo esse modelo.
Qual é o futuro do jornalismo? Há risco de ele extinguir-se como profissão?
Não há meios de o jornalismo deixar de existir. As pessoas são tão ocupadas que não têm tempo para se dedicar à informação. Eventualmente, sim, as pessoas poderão ajudar, filmar, fotografar, mandar notícias, mas esse trabalho sempre vai ser suplementar. Os profissionais de jornalismo é que vão ser os agentes principais, porém não exclusivos! Já acreditaram ser os únicos donos da notícia, mas isso deixou de existir. Esses profissionais têm de acompanhar essas tendências, contudo o futuro do jornalismo está nas mãos das pessoas graduadas. Em Portugal, a ‘tarimba’, ou seja, a experiência pura era muito forte num tempo recente. Em 1980, era talvez dominante. Nesse aspecto os brasileiros estão à frente dos portugueses; introduziram o ensino superior antes de nós. Isso, com certeza, se deve a influência estadunidense.
Em que momento começa o ensino superior em jornalismo em Portugal?
Desde de 1980 havia um curso de jornalismo na Universidade Técnica; no fim daquela década, havia em diversas universidades, como a Universidade da Beira Interior e a Universidade do Minho. Em 1989, também na Universidade Nova de Lisboa, onde atuei. Depois, em 1990, se disseminou, pois as universidades se deram conta de que era uma boa maneira de se fazer dinheiro.
Qual é a realidade do ensino universitário em Portugal na atualidade?
Com a Declaração de Bolonha, firmada entre países europeus em 1999, reduziu-se o ensino superior de quatro para três anos. Sou contra! Não há qualquer justificativa científica para tal alteração, só uma razão econômica, que era gastar menos.
Como se deu o início das pesquisas acadêmico-científicas no campo do jornalismo em Portugal?
A existência de mestrados e doutorados estimulou a pesquisa no país, pois era preciso produzir teses e dissertações. Quando iniciei na investigação, se ignorava a história da imprensa em Portugal, havia um livro só sobre o tema! Além disso, a literatura sobre o jornalismo em português era inexistente. Era preciso comprar livros no Brasil, que já tinha desenvolvido alguma coisa nessa área. Ainda assim, a maioria eram livros estrangeiros. Foi por essa razão que, em 1993, publiquei a antologia intitulada Jornalismo: questões, teorias e ‘estórias’. Para ela, escolhi com esforço 20 artigos que representam as melhores coisas que li sobre jornalismo e que propunham diversas teorias sobre a área. O livro traz, por exemplo, o artigo dos acadêmicos estadunidenses Harvey Molotoch e Marilyn Lester em que eles discutem que grande parte dos acontecimentos é criada para o consumo dos jornalistas, para virarem notícia.
Essa visão algo ingênuo do jornalismo como um espelho da realidade têm-se modificado?
Sim. Têm surgido iniciativas importantes, como o que eu chamo de ‘ jornalismo cívico’, ou seja, não se pode seguir os políticos, apoiar tudo o que fazem. O jornalismo precisa ouvir o público por meio de sondagens, perceber o que as pessoas querem e o que as preocupa. Dessa forma, é possível moldar a sua estratégia e a cobertura em função das preocupações reais das pessoas. Isso, evidentemente, não quer dizer que não devamos ouvir os profissionais da política, mas é importante também ouvir o público. Há ainda questões importantes sobre quem são as fontes da informação. Por isso que é fundamental ler as notícias com um olhar crítico.