Nesse cenário dominado por homens (77%), DJs como as gaúchas Manuela, Nina, Fernanda e Carola são minoria. O Mescla, então, foi conhecer a trajetória desse quarteto feminino, como lidam com a carreira, o que fazem para se destacar e, claro, os preconceitos que enfrentam. Te acomoda na cadeira aí e vambora!
O princípio
A cultura DJ surgiu antes da música eletrônica, e Sonia Abreu foi a primeira brasileira a se consolidar no ramo, nos anos 60. Ela tocava em boates underground do centro de São Paulo, mas também em festas high society da cidade. Foi uma revolucionária da música, crescendo na esteira dos movimentos da Jovem Guarda, Tropicália, Rock, entre outros.
Nos Estados Unidos, a cultura DJ se consolidou nos anos 70, em Nova York, com Francis Grasso, o americano que inventou a técnica do beatmatching, a base da técnica do DJ moderno. David Mancuso fundou o The Loft, uma casa de festa em que só se entrava com convite. Ao som disco, essas festas reuniam gays, héteros, brancos, latinos, negros e judeus, que juntos disseminavam os ideais de fraternidade, igualdade e amor.
Quem são elas?
Ouça o som da Carola
Carolina Alcântara (Carola), 22 anos, é DJ e produtora musical desde 2012, quando tinha apenas 14 anos. Naquele ano, ela ficou em segundo lugar no concurso que elegeu o DJ Revelação do Rio Grande do Sul. Em 2015, tocou para 15 mil pessoas no estádio Maracanã, no Rio de Janeiro, e lançou o seu projeto pessoal: CAROLA. A evolução foi constante. Em 2017, sua primeira música original chegou à plataforma de música digital Spotify, obtendo 500.000 mil reproduções. Recentemente, foi eleita a Melhor DJ do Rio Grande do Sul pelo DJS Awards RS 2019.
Carola conta que o início foi duro. Ela não tinha grana para pagar um curso de DJ, então, baixou o programa Virtual DJ (sim, esse mesmo!) e estudou os princípios básicos de música e mixagem. Em um primeiro momento, ela não recebeu o apoio da família e dos amigos. Outro desafio foi enfrentar alguns preconceitos. “Sou uma mina que estuda pra caramba, e eu faço isso para suprir o que os produtores procuram em DJs mulheres, que é um certo padrão de beleza”, diz Carola, que nunca se considerou o estereótipo da “mina gostosa” que chama a atenção de muitos produtores.
“Eu sempre pensei que quem produz evento tem que me contratar por eu ser boa, e não por eu ser bonita. Eu estudo produção musical a semana inteira, oito horas por dia, e nos fins de semana eu me divido entre os shows. Eu tento mesclar muita coisa que eu curto. Toco bastante hip hop nos meus sets. Geralmente, o break, a parte mais calma da música, é de algum artista que eu gosto ou me identifico. E o drop é a parte mais bombada para a galera dançar. Tenho músicas originais que eu fiz em conjunto com cantores. Algumas foram lançadas e outras ainda vão ser. Nos próximos meses, vou lançar dois remixes oficiais do Francisco El Hombre. Hoje, posso dizer que eu conquistei o meu espaço e o reconhecimento das pessoas” – Carolina Alcântara
Ouça o som da Fernanda
Carola não é a única que busca evolução e visibilidade com seu trabalho. Fernanda Rizzo, 22 anos, cresceu em Canela, na Serra Gaúcha. Iniciou sua carreira como DJ aos 18 anos, quando se mudou para Porto Alegre. Seus pais sempre foram amantes de referências artísticas dos anos 80, como ABBA, Bee Gees, Cher, Tina Turner, Madonna e Barry White.
“Minha relação com a música começou na infância. Pratiquei capoeira por 11 anos, e isso me fez ter uma relação muito forte de ritmo, dança e liberdade de expressão. Quando cheguei em Porto Alegre, comecei a frequentar mais festas e me descobrir ainda mais como pessoa e artista. Eu era amiga de produtores, e tive a oportunidade de fazer um set em um DJ Contest (competição) no club Tabu. Foi um sucesso! Desde então, não parei mais. Toquei por dois anos no estilo open format (sem um estilo musical específico) em diversos clubes da cidade. Mas foi quando eu caí numa festa de música eletrônica, época de Vorlat na rua, que me apaixonei, e vi que ali era meu lugar. Comecei a frequentar e pesquisar música eletrônica até o momento em que eu queria estar tocando. Mas onde eu tocava não tinha espaço para desenvolver esse trabalho. Então, me uni a outros amigos que tinham os mesmos anseios que os meus e fomos para a rua. O coletivo Plano surgiu assim, um movimento criado em 2017 por jovens artistas de Porto Alegre, cujo objetivo é questionar a utilização e preservação do espaço público, bem como sua segurança” – Fernanda Rizzo
Em 2018, Fernanda criou o coletivo GRETA ao lado das artistas Paula Vargas e Mare Viscaino. “Surgiu como uma necessidade gritante na nossa cena, que é composta majoritariamente por homens brancos, cis, héteros”, afirma. A primeira edição da festa ocorreu em 25 de maio de 2018 e trouxe as artistas Clara Moretzsohn a Kika Lopes. Para Fernanda, existem corpos diversos na sociedade, mas espera-se que a mulher seja feminina e siga uma série de regras.
É uma luta! Pensando além do mercado artístico, toda mulher num cargo que é majoritariamente composto por homens brancos e cis precisa lutar muito mais para ter seu espaço. Produtores, DJs e até mesmo o público sempre duvidam da nossa capacidade. Nos tratam com desrespeito, muitas vezes são abusivos, não nos dão espaço para mostrar nosso trabalho” – Fernanda Rizzo
Conheça Nina Sodré
Nina Figueira Sodré, 32 anos, sabe como é conviver com pessoas que desvalorizam seu trabalho pelo gênero. Formada em Design de Moda pela Uniritter, atualmente cursa Psicologia. Produzia festas de hip hop, uma cultura que sempre esteve presente em sua vida. Foi com esse ritmo que Nina conseguiu o primeiro convite para tocar em uma festa.
“Pedi ajuda de um amigo meu. Eu toquei, mas fomos vaiados, porque era uma festa gay e colocar hip hop fugia da temática. Assim, me dei conta de que não existia nenhum lugar em Porto Alegre que tocasse hip hop. Então, eu e meu amigo começamos a fazer nossa própria festa, no Beco. A gente achava que não teria chance, mas deu muito certo. Agora, trabalho apenas como DJ. Eu não tive estômago para produzir mais festas. É um desgaste! Ter que conviver com eles (produtores)! Eu não queria conviver mais com aquelas pessoas. Eu não concordava com a maior parte das coisas que eles faziam” – Nina Figueira Sodré
Nina conta que uma das dificuldade está no fato das festas serem organizadas por homens. “Eu sei que, quando eu fecho um valor, eles choram um monte, e eu sei que eles tão pagando mais para um outro amigo meu que toca exatamente o mesmo tempo”, comenta. A DJ revela que desenvolveu uma personalidade forte trabalhando na noite, mas isso não a exime de mágoas. “Nunca me atraso, tive outras propostas melhores em lugares melhores, mas cumpri o prometido. Você fica a noite acordada e não descansa”, diz.
Ouça o som da Manu
Manuela Solheid, 28 anos, começou a discotecar há seis. Aprendeu com seu ex-namorado, que lhe ensinou o básico e a fez pegar gosto pelo trabalho. Em 2014, tocou no LAB (Sinners), em Porto Alegre, e desde então conquistou outros espaços da Capital, como Beco, Anexo B e Margot. Manu toca o que precisar, mas se sente mais confortável com a música pop. Assim como muitas outras DJs, ela já enfrentou muita coisa.
“Já teve casos de caras que invadiram a cabine pra arrancar os cabos, ou querendo me ensinar como discotecar. Já sofri assédio de técnico de som também. E até nas próprias baladas gay, que são mais meu nicho, rola muito preconceito”, afirma Manuela. Para ela, o mais importante para o DJ é ter a sensibilidade de entender o que o público precisa ouvir e aplicar na música, com uma boa transição.
Manu é publicitária e o trabalho como DJ é uma paixão. Se inspira em artistas como Nervo, Black Madonna, TokiMonsta, Alison Wonderland, além da gaúcha Fran Souza, com quem já teve a oportunidade de tocar. Para ela, a noite é um ambiente que tem seu lado tóxico, e é preciso saber navegar sem se machucar.
“Existe preconceito com mulher tocando, pelo menos vivi isso. Já ouvi várias vezes: “Ah, porque ela namora um produtor de festa ela acha que é DJ” ou “com quem será que ela transa pra tocar na festa” – Manuela Solheid
Ser DJ é…
Para Fernanda, é fazer curadoria musical, leitura de pista e conduzir momentos. Cada estilo musical é diferente e exige uma técnica apropriada, mas esse estudo é totalmente pessoal. Cada um cria a sua identidade como DJ. “Para ser bom nisso, você precisa, antes de tudo, ter personalidade e originalidade. A técnica, o estudo e o conhecimento agregam quando você se dedica a qualquer trabalho com paixão”, comenta a artista e produtora.
Manu comenta que a técnica básica do DJ é o beatmatching (aquela do Francis Grasso), que consiste em colocar as batidas em sync (sincronização) para que a transição entre as músicas seja o mais suave possível. “Eu procuro sempre conhecer o que tem de novidade musical, principalmente música pop, que é mais meu nicho”, diz ela.
Para Carola, o trabalho vai além de mixar as músicas durante a festa. “Eu lidava com praticamente todas as áreas que envolviam o resultado final da minha carreira. Desde o planejamento estratégico do projeto, o booking, as artes de lançamento das músicas, artes de tour dates“, diz a DJ. Além disso, ela também é quem redige os contratos, lida com contratantes, cuida das redes sociais e distribui suas músicas para plataformas de streaming. Carola tem buscado alternativas para descentralizar esse trabalho, como as agências, mas não pretende perder sua autonomia.
Nina investiu em um curso de DJ focado em música eletrônica, por não ser seu estilo musical original. Tudo o que Nina aprendeu foi na vivência, mas tem uma coisa que ela considera essencial para um DJ. “Ser boa é fazer uma boa leitura de pista. Por isso, eu me especializei em abertura de pista, porque ninguém está bêbado e você não pode queimar um hit. É você ter a sensibilidade de olhar para o outro e oferecer uma experiência única”, explica.