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Histórias de humanidade e esperança na tragédia 
"Esta quarta-feira (4/10) completa 30 dias da enchente que arrasou cidades do Vale do Taquari. Os repórteres do Mescla Gabriele Rech e Nícolas Suppelsa acompanharam alunos da Unisinos que foram até o local, na semana seguinte após a cheia histórica, prestar ajuda aos moradores atingidos. Eles contam, a seguir, um pouco sobre o que viram e vivenciaram junto das vítimas e dos voluntários"
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O Mescla esteve presente de 12 a 15 de setembro no Vale do Taquari, região assolada pelas cheias derivadas do grande volume de chuva do mês. A repórter Gabriele Rech visitou a cidade de Muçum, a mais citada nos telejornais brasileiros pela grande devastação, e focou seu olhar na perspectiva das vítimas e na esperança e resiliência que sentiu. Já Nícolas Suppelsa foi para Arroio do Meio, município menos afetado, mas ainda assim com um cenário impactante, e trouxe o que pensam os voluntários que ajudaram no primeiro momento da emergência e que também compartilham do sentimento de esperança.

Arroio do Meio: a força da ação de mãos dadas

Texto e fotos: Nícolas Suppelsa 



Acompanhar de perto e ao vivo uma tragédia que já vimos muito pela televisão me trouxe sensações que não pensei que o jornalismo me proporcionaria tão cedo. Ver o barro, sentir o cheiro forte exalado dele e presenciar a destruição em Arroio do Meio, sabendo ainda que essa não foi a cidade mais atingida, me causa desolação e tristeza. No caso de várias famílias, tudo o que elas tinham virou lixo. Ao chegar lá, percebi mesmo que a enchente não fez distinção entre pessoas com mais ou menos dinheiro. Uma certa sensação de impotência se instalou logo ao chegar na cidade, o que foi mudando ao longo do dia, visualizando a verdadeira força de trabalho que se instaurou no território, com o esforço de dezenas de pessoas para melhorar a situação dentro do possível.

Uma das casas mais próximas do rio só não foi levada pela correnteza por ser de alvenaria


Mas não quero que o foco desse texto seja a tragédia em si, e sim a onda de solidariedade que ela trouxe para os que precisam. Os esforços começaram assim que a água começou a baixar. A cidade inteira está servindo de abrigo para pessoas e para doações, numa força-tarefa que não para. Os principais pontos de apoio são o salão da Paróquia Perpétuo Socorro, o ginásio do Colégio Bom Jesus, o Clube Esportivo de Arroio do Meio e o Seminário Sagrado Coração de Jesus, que receberam doações de todos os tipos, como comida, roupas, materiais de limpeza, higiene pessoal e brinquedos. 

Mar de jeans no salão paroquial. As pessoas atingidas pela enchente podem levar a quantidade de roupas que necessitarem


No dia que estivemos no salão paroquial, voluntários, como a estudante de Fisioterapia Nicole Meneghini, e vítimas buscando doações, se misturavam. A jovem de 23 anos conta que o avô teve a casa atingida, mas está bem. Ela está atuando com as colegas no trabalho de apoio, já que conseguiram liberação dos estágios. “Quase todos os pacientes que a gente atendia tiveram a casa levada, literalmente, pela água.” Elas estão acompanhadas pela professora Lydia Koetz Jaeger, 39 anos. Todas vêm da Univates, Universidade do Vale do Taquari, que tem sede em Lajeado. 

Nicole e suas colegas não pensaram duas vezes na hora de decidir ajudar


O Seminário Sagrado Coração de Jesus já há tempo não funciona mais com o intuito de formação de futuros padres, mas ainda tem uma função dentro da igreja: promover cursos e retiros, principalmente para a capacitação de ministros (que fornecem orientação espiritual para a comunidade). 

Com a tragédia, essa função se transformou, e hoje o local está focado na alimentação das pessoas atingidas pela enchente na cidade. Heitor e Margarete Schmidt, coordenadores do antigo seminário, conversaram comigo. Eles contaram que trabalham todos os dias, incluindo finais de semana, das 8h30 até às 18h. Na verdade, o pessoal da cozinha começa às 5h para dar conta da quantidade de marmitas. No começo, segundo o casal, havia uma certa desorganização. Mas ao longo dos dias, tudo foi se ajeitando: “Se tem uma coordenação, a coisa flui”, é a opinião de Margarete. 

Com a tragédia, o Seminário Sagrado Coração de Jesus está focado em fornecer alimentação às pessoas atingidas pela enchente


A cozinha do Seminário é utilizada por voluntários que vieram de diversos lugares do país para a confecção de marmitas. As salas do primeiro andar serviam para a confecção de cestas básicas e armazenamento de doações. Margarete explicou que várias empresas acabaram fazendo doações de larga escala e cedendo funcionários para ajudar – a BRF, que tem vários ex-funcionários aposentados cujas casas foram atingidas na cidade, por exemplo, chegou a enviar 15 colaboradores em apenas um dia.

O número de marmitas em um dia ultrapassou mais de mil, número registrado na lateral de um dos pratos


No decorrer da primeira semana pós-tragédia, uma figura importante na cozinha foi a professora de Gastronomia da Unisinos Franciele Reche. Em um depoimento emocionado, junto da aluna de Nutrição Karine Gräbin, ela compartilhou o sentimento de fazer parte deste momento tão delicado, afirmando que é muito difícil de falar sobre a experiência.

“No mínimo, transformador. O tempo passa muito rápido, é diferente aqui”, diz Karine, ao mesmo tempo que Fran complementa: “É um misto de emoções. Uma hora a gente está triste, depois feliz, depois desesperada. Mas acho que o que permanece sempre é a esperança”. As duas ficaram hospedadas no mesmo local que as vítimas, no segundo andar do Seminário, que serviu naquela semana para alojamento de desabrigados e voluntários vindos de outras cidades. Elas e outros professores e alunos da Unisinos dormiram lá desde o começo das operações, na terça-feira (12 de setembro) até a sexta-feira (15).

“É, esse quarto 7 tem história”, ri Karine de uma maneira já saudosa quando me vê fotografando a porta 

Professora e aluna destacam a importância do padre Alfonso Antoni, pároco da paróquia principal da cidade, que não mediu esforços para que tudo desse certo. “Ele não para um segundo, está sempre de carro viajando entre as cidades para buscar mantimentos”, concordaram Franciele e Karine. Por isso, foi impossível fazer uma entrevista com ele, naquele dia. Mas o programa Pretinho Básico, da Rede Atlântida, conseguiu. O repórter Raphael Gomes foi até onde eu estive para conversar pessoalmente com o padre, em campo, exatamente onde tudo estava acontecendo. Para conferir as histórias e conhecer um pouco do Seminário em um vídeo de Reels, você pode clicar aqui.

(Foto: Reprodução Instagram Karine Gräbin – @_kgrabin)

Uma das poucas coisas que o padre conseguiu compartilhar comigo foi mostrar, no local onde era o salão de festas da igreja, o “barco da esperança”, objeto cedido por uma fiel que fez uma promessa e pagou na forma da doação. A embarcação ficou intacta mesmo com toda a destruição da estrutura em volta.

“Agora, esse barco significa ainda mais para nós. Essa palavra significa tudo o que temos”, afirma o padre Alfonso


Karine conta que teve que improvisar e abrir mão do ideal saudável, em prol da refeição possível. “Um dia, o cardápio possível a ser feito era composto por massa com salsicha. Quem recomenda comer isso numa aula de Nutrição? Ninguém. Nesse momento, temos que trabalhar com o que se tem. E isso alimenta, sim, quem está com fome”, afirmou.

Junto da professora de Gastronomia, Franciele, uma conterrânea ajudou a coordenar as atividades. A moradora Cátia Schnorr, culinarista e youtuber com anos de experiência, não teve grandes danos materiais, diferentemente do filho, que teve a casa muito atingida. Segundo ela, o foco inicial foi na limpeza das casas.

“Nós ficamos sem água. Eu pegava da piscina pra limpar a roupa. Quando vi que estavam precisando de voluntários, me ofereci pelo Instagram e vim para cá”, disse. A chefe de cozinha se preocupa com a queda de mão de obra ao longo do tempo e dá o recado à comunidade: “Quem quiser vir, tem que vir! Porque semana que vem a força continua”.

As pessoas saíram de suas rotinas. No Seminário, por exemplo, os horários são definidos e seguidos à risca. Mas uma atividade que Arlindo Eduardo Kronbauer, de 88 anos, não abre mão, é a de assistir às novelas das 18h e das 21h na TV. Tendo perdido a esposa há 2 anos, ele morava com a filha na casa que foi tomada pela água. O Seminário possui uma sala cheia de móveis que serão doados. Em meio à bagunça, existe uma televisão que sintoniza os principais canais nacionais.

Karine e Franciele fizeram questão de posar com Arlindo


“Eu gosto de vir no final da tarde para pegar a novela das 18h, aproveito para ver o jornal e, depois, a Terra e Paixão, que eu gosto também.” Arlindo faz questão de me mostrar a chave do carro, que foi salva da enchente, e dizer que, mesmo com a idade, ainda é muito ativo. Ele sai da entrevista correndo para outro compromisso.

Uma TV se esconde no mar de móveis entulhados para doação na salinha apertada

Outro relato de Karine e Franciele é de uma professora aposentada que chegou apressada no Seminário, pedindo desculpas pelo atraso no horário. “Nós perguntamos: ‘Tu trabalhas aqui?’ E ela respondeu: ‘Sim, limpando minha casa que está tomada por barro’”. 

É preciso destacar também a força de Natália Schwarzer, que está atuando na coordenação geral das atividades do Seminário. Natural também de Arroio do Meio, ela está executando atividades administrativas de diversos tipos, algumas até mesmo de assistência social, apesar de atuar profissionalmente como cabeleireira. “Eu apenas tenho esse perfil”, diz Natália.

Natália Schwarzer está atuando na coordenação geral das atividades do Seminário



“Conhecemos pessoas que nunca conheceríamos em outras circunstâncias. Tipo os bombeiros do Paraná, ou de Minas Gerais, que inclusive atuaram em Brumadinho. Queremos fazer um encontro só dos voluntários. Vamos sentir muitas saudades. Nos apegamos muito, parece que foi um mês e não uma semana”, afirmaram Karine, Franciele e Natália juntas, em meio às lagrimas, pois estava na hora das voluntárias de São Leopoldo retornarem às suas casas. O desejo de fazer o reencontro é para quando a cidade estiver reconstruída.

(Foto: Reprodução Instagram Karine Gräbin – @_kgrabin)

E o desejo deste estudante de Jornalismo é que tudo o que é material se recupere, o rio Taquari permaneça onde está, e as pessoas continuem com o mesmo espírito de solidariedade e coletividade depois que tudo passar.

Rio Taquari ainda engolia ruas uma semana após as chuvas torrenciais do início de setembro


Um relato de resiliência e esperança

Texto, fotos e imagens: Gabriele Rech


Por causa da tragédia do Vale do Taquari, tive a oportunidade de embarcar em uma jornada profissional e pessoal que jamais esquecerei. Como jornalista, sempre acreditei no poder das palavras para contar histórias que fazem a diferença, mas nada poderia ter me preparado para a experiência de cobrir a tragédia que assolou a região.

Quando me voluntariei para ir até o Vale, sabia que seria um desafio extraordinário. As imagens das enchentes e da destruição que vi nos noticiários não se comparavam à realidade que encontrei lá. Quando cheguei na cidade de Muçum, uma das mais atingidas, o cenário era devastador, e as vidas das pessoas estavam em pedaços.

Cenas da chegada a cidade de Muçum



O ar estava carregado de tristeza, solidariedade e uma sensação de comunidade que transcendia o desastre. As pessoas que encontrei, apesar de terem perdido tanto, eram incrivelmente resilientes e unidas. Elas compartilharam suas histórias de perda, luta e esperança comigo, e em troca, só queriam ser ouvidas. Minha câmera e meu bloco de notas se tornaram minhas ferramentas para registrar os momentos mais tocantes daquela jornada. Eu conversei com moradores que haviam perdido suas casas, suas empresas e até mesmo entes queridos. Cada história era um testemunho da força humana diante da adversidade. 

Registro pessoal dentro de uma das casas que visitei

A agente comunitária de saúde Lucilene Bonetti conseguiu reservar um tempo do seu dia corrido para me contar sua história. Quando o rio começou a transbordar e a água a invadir a cidade, Lu, como prefere ser chamada, estava em casa e iniciou o protocolo que já era conhecido nessas ocasiões, colocando seus móveis em cima de algo mais alto, para evitar danos, e retirando os equipamentos eletrônicos para levar com ela. “Por volta das 17h, a água começou a entrar no meu quintal, mas avançou tão rápido que em 20 minutos ela já estava cobrindo o meu porão. Foi então que decidimos sair da nossa casa.”

Lucilene Bonetti em frente a uma das ruas afetadas de Muçum (Foto: Andy Miritz)

Lu e a família foram para a casa da sogra, local onde até então nunca havia chegado água durante outras enchentes. “Às 19h, a água já invadia o terreno da minha sogra. Às 21h, ela já estava cobrindo o porão, e 15 minutos depois eu estava saindo de lá com água até o meio da minha perna”, relatou. Ela e toda a família conseguiram sair e foram para o Mirante Bixo do Mato, ponto turístico da cidade, que agora abriga diversas famílias que perderam suas casas. Foi lá que eles passaram a noite, mas não conseguiram descansar, pois a ansiedade para voltar e ver como estava a cidade era enorme. “Quando nós chegamos, a surpresa: Muçum estava toda dentro d’água e nós não tínhamos mais casa. A minha tinha ido literalmente embora.”

Quando questionada se pretende sair de Muçum, Lu prontamente responde: “Eu fico porque amo essa cidade, estou aqui há 21 anos, criei meus filhos aqui, tenho muitos amigos aqui e irei sentir muito se tiver que sair de Muçum, tanto é que eu sinto muito em ver o horror que ela está hoje.”

Mesmo sendo muito falado na possibilidade de a cidade deixar de existir, para Lu isso não irá acontecer, pois o povo não vai deixar. “Eles irão levantar Muçum, e juntos, vão se reconstruir”, frisou. Por fim, ela destaca o mais importante de toda esta situação atual: a solidariedade. “Hoje, a nossa cidade está virada do avesso, mas estão ajudando a construir ela de novo, pois isso está sendo feito do zero”.

O Ginásio Municipal de Muçum se transformou em um deposito para doações (Foto: Andy Miritz)

Aqueles que, como nós, vão para a cidade oferecer ajuda, testemunham não apenas a devastação, mas também a incrível solidariedade que surgiu. Voluntários de todos os cantos do país se juntaram para ajudar na recuperação. Lá, eu tive o prazer de presenciar uma comunidade unida pelo mesmo objetivo: ajudar Muçum a se reerguer. A tragédia no Vale do Taquari foi um lembrete doloroso de como somos vulneráveis diante da natureza, mas também de como somos capazes de nos unir em tempos difíceis. 

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