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Quando as MCs são elas: mulheres na cena do rap gaúcho
"Três histórias de mulheres que conquistaram (a duras penas) a cena de um ritmo associado à figura masculina "
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Com letras que carregam simbolismos, lutas e identitarismo, o rap despontou por todas as regiões do Brasil. O ritmo, desde sua origem (que veremos a seguir), está fortemente associado ao gênero masculino e pautas que, por mais que estivessem ligadas às angústias e revoltas comuns a todos, não expressavam de forma eloquente os anseios das mulheres. Mesmo assim, ao longo dos últimos 40 anos (início da trajetória do rap brasileiro), grandes mulheres se tornaram referências, como, por exemplo, Negra Li, Drik Barbosa e Tássia Reis.  


Sabe o que essas três gigantes da cena têm em comum? Todas são de São Paulo, berço do rap no Brasil. Se a  caminhada para se consolidar no ramo é árdua, mesmo para quem está no centro do país, imagina para as que vivem nas bordas do Brasil? É o que o Mescla mostra nesta reportagem: três gaúchas que vivem o rap, cada uma à sua maneira.   


Cristal – das rodas de slam aos festivais de rap 


“Acredito que todo artista, antes de se tornar artista, tem uma vontade enorme de externar um desconforto, um sentimento, uma opinião. E é esse desconforto, de guardar muitas coisas pra mim, que fez com que eu ”cuspisse” nas linhas de poesia”, revela a rapper porto-alegrense ao relembrar do começo da sua trajetória no rap. 

Cristal: “Como rapper e artista negra, a minha dificuldade é quando meu rap chega nas faculdades, ou em lugares privados, tradicionais”
(Foto: Mélanie Silveira) 



Aos 15 anos, Cristal passou a frequentar rodas de slam, que são competições de poesias autorais declamadas. Com o passar do tempo, conquistou prêmios, como o nacional Slam-BR, em 2017. “O rap nos slams é muito presente, muitos MC’s levam suas letras de rap e recitam em apresentações. Mesmo que não tenha um acompanhamento instrumental, muitos cantam as melodias”, diz a rapper.


Dessa forma, não demorou muito para aflorar o desejo por transformar suas poesias em melodias. “Em 2019, tive um momento de introspecção. Refleti muito sobre o que tinha feito até ali, como menina nova e tão ativa em eventos e meios ativistas. Isso me pesou um pouco e decidi me afastar da arte até que voltasse a fazer sentido para mim, que fosse algo mais bonito, mais leve e mais justo comigo. Por isso, decidi cumprir apenas os eventos já agendados e, então, parar com a arte. Um desses compromissos foi uma palestra que fiz para o TEDxLaçador, no qual pude resgatar memórias da minha família e refletir meu presente”, recorda Cristal.  


Foi, então, que os eventos de sua vida passaram a coincidir e “fazer sentido”. O DJ MDN Beatz, e também seu primo, sempre a convidava para gravar, até que em determinado momento Cristal aceitou. E, assim, saiu a primeira música, intitulada ”Rude Girl”, inspirada no projeto da palestra. 


Referências para Cristal é o que não faltam 

 
“Certamente o Mano Brown é um grande nome aqui em casa. Essa admiração vem da minha mãe, que viveu muito o auge dos Racionais na adolescência dela. Drik Barbosa é meu ídolo mesmo, não escondo e rasgo elogios. Tive o prazer de a conhecer pessoalmente, e agora posso chamá-la de amiga”, destaca a rapper.  


Outra referência especial para Cristal é o rapper mineiro Djonga. Depois de alcançar o Brasil inteiro com o hit “Ashley Banks”, a jovem foi surpreendida por um convite do cantor para participar do seu próximo lançamento, “Deus Dará”.  


Laddy Dee – e a intensa jornada da vida dupla 


A história de Laddy Dee é bem diferente da de Cristal. Natural de Pelotas, mais especificamente da zona da Várzea, Daiane Vieira Moraes sempre teve grandes figuras femininas como influências ao seu redor. Sua mãe, Maria Cristina Vieira, foi a primeira mulher a fundar e liderar, em sua cidade, uma escola carnavalesca, a Dona da Noite. E Daiane segue o legado: é intérprete carnavalesca da agremiação. Seu nome artístico tem inspiração em grandes mulheres, como o da cantora brasileira Lady Zu e o da princesa Diana. 


Apesar de ainda não conseguir se dedicar exclusivamente à música – ela trabalha como faxineira –, Laddy Dee está há 20 anos no meio musical. A artista explica que muita coisa mudou de lá para cá, e segue mudando, principalmente em relação ao acesso às plataformas digitais e à gravação musical. Porém, Daiane enfatiza que, duas décadas depois, alguns aspectos ainda parecem ser os mesmos.  


“A maior dificuldade era a função da masculinidade, dos homens, pelo fato deles terem mais propriedade e abertura dentro do rap. Às vezes, a gente tem que se masculinizar para ser vista dentro da cena. Enquanto mulher, temos dificuldade em manter o nosso espaço. Aqui no Rio Grande do Sul, em Pelotas mesmo, a gente não tem estúdios com mulheres sendo proprietárias. Dependemos dos homens ainda para poder gravar”, avalia a rapper. Apesar das amizades e possíveis parcerias, Daiane reforça que, quando se é mulher, sempre há uma barreira a mais. “Em muitos casos, os homens que se dispõem a ajudar não estão interessados apenas no nosso lado profissional”. 

 

Além de rapper e faxineira, Laddy Dee também é intérprete carnavalesca da escola fundada por sua mãe  
(Foto: arquivo pessoal) 



Laddy Dee se mostrou resiliente numa caminhada cheia de obstáculos ao conciliar as faxinas com a sua arte. Em 2021, ela foi contemplada pelo edital Fundação Marcopolo, com recursos da Lei Aldir Blanc, criada no contexto da pandemia para apoiar o setor cultural e criativo. Com isso, finalmente realizou o sonho de gravar dois videoclipes. “Minha trajetória” e “Cria do gueto” são composições extremamente pessoais e que remetem à sua história de vida, mas também a de tantas outras mulheres que vivem essa realidade.  


“Somos um elo, uma corrente, uma comunhão, somos guerreiras e de fé. Temos uma missão, não devemos desistir, não é a solução.” Com esse verso da música “Cria do Gueto”, Daiane evidencia o empenho e a persistência não só na cena do rap feminino, mas na vida diária das mulheres como um todo.  


Negra Jaque – das batalhas aos EP’s 


Jaqueline Trindade Pereira, ou apenas Negra Jaque, é rapper, produtora e pedagoga. Assim como Cristal e Laddy Dee, seu gosto pelo rap teve início ainda na infância, cercada por influências majoritariamente masculinas, tanto por seus familiares quanto por músicos da cena.  

Negra Jaque entende que o rap gaúcho carece de uma produção que respeite o artista 
(Foto: arquivo pessoal) 



Com o tempo, Jaque entendeu a importância da representatividade e também se tornou referência para outras mulheres. É considerada uma das precursoras da cena do rap feminino no Rio Grande do Sul. 


Sua carreira começou ao lado do coletivo Pesadelo Sinistro, em 2007, mas foi em 2013 que ela tomou outro rumo. Jaque foi a primeira mulher a vencer a Batalha do Mercado, disputa de rimas já tradicional, realizada ao lado do Mercado Público, em Porto Alegre. Com o dinheiro da premiação, a artista gravou seu primeiro EP, “Sou”. Depois, Jaque lançou outros dois projetos: “Deus que dança”, em 2017, e “Diário de Obá”, em 2019.  


Para Negra Jaque, o rap não é só a música. Jaqueline entende e vive o ritmo na perspectiva da educação, como uma ferramenta social transformadora. Além do trabalho como pedagoga, a rapper idealizou e fundou o Galpão Cultural, espaço de encontro e acolhida da cultura hip hop.  


Enquanto artista, Negra Jaque fala sobre o peso da invisibilidade, e como isso está presente em atitudes pequenas. “Não adianta ser vista e não ser chamada e reconhecida”, pontua. Dentro da cena do rap gaúcho, Jaque cobra uma atitude de mais respeito, pois entende que seu trabalho é sempre relativizado. “‘Ah, é só uma batalha!’ Não! Esse é o nosso trabalho!” 


Afinal, de onde veio o rap? 


O ritmo, na verdade, tem origem jamaicana. Rap é uma sigla que, em inglês, significa rhythm and poetry (ritmo e poesia). Nos Estados Unidos, foi introduzido por um jamaicano, Clive Campbell, ou DJ Kool Herc, morador do bairro novaiorquino Bronx. Ao lado dele, Grandmaster Flash e Afrika Bambaataa foram grandes influenciadores do estilo.



Grandmaster Flash criou a técnica backspin, na qual isola a batida de um dos dois discos que estão sendo tocados e a repete no outro, prolongando o segmento por tempo indeterminado
(Foto: reprodução / Veja São Paulo)



Em um período político e econômico conturbado nos Estados Unidos, nos anos 1970, e com a ascensão de alguns grupos sociais em detrimento de outros, como pretos e latinos, a aquisição de alguns bens, como o toca-discos, se tornou mais acessível para esse público. Com isso, os encontros e festas de ruas para apreciar aquela batida tão diferente foram se tornando cada vez mais comuns. 


O rap faz parte de uma cultura maior, sendo um dos pilares do hip hop. Isso porque seu impacto transcende o meio musical e reflete no comportamento e na filosofia de vida de quem adere ao estilo. Ao lado do rap e do breakdance, estão fundamentos como o grafite e a figura do MC (mestre de cerimônias) e DJ (disc jóquei). Sem contar, é claro, com a moda que complementa a cultura e estética do movimento.  


O impacto que a cultura hip hop teve no seu princípio, em especial nos Estados Unidos, foi a atenuação da violência através do break. Isso porque conflitos reais entre diferentes gangs eram resolvidos por meio da dança em forma de disputa. No Brasil, isso não aconteceu. Ou melhor, não se pode dizer que é uma das características que marcam a cena brasileira.  


Do hemisférico norte ao sul: como o rap chegou no Brasil 


Em meados dos anos 1970, era muito comum a ocorrência dos chamados “bailes black”, no qual o público era majoritariamente periférico e preto. Até então, os ritmos que predominavam esses eventos eram soul, funk (norte-americano), R&B e charme, além do samba, é claro.  


A partir da década seguinte, movimentos políticos sociais de grande magnitude, como as Diretas Já, passaram a dar outro tom para os bailes black. A novidade era a forma de cantar, ou melhor, falar. Aos poucos, o rap falado, como hoje conhecemos, ia se moldando em letras de cunho subversivo, audaz e revolucionário. Naquela época, o Brasil travava uma luta em prol da democracia, tentando desprender-se das amarradas de uma ditadura militar tão recente. Assim, aos poucos, ecoava nas periferias paulistas a indignação dos jovens – em sua maioria pretos – contra a violência do sistema em forma de música. 


O ritmo demorou para ser bem-visto por aqueles que viviam longe dos guetos e favelas. Foi somente no início da década de 1990 que a indústria passou a dar espaço para nomes que estão até hoje marcados na história da cena, como Planet Hamp, Racionais MC, Sabotage, entre outros. 


 E como funcionam as batalhas de rima? 


As competições são extremamente importantes na cultura hip hop, e estão mais presentes nas cidades do que imaginamos. Como vimos com a trajetória das artistas Cristal e Negra Jaque, existem diferentes tipos de rodas e batalhas.  


Nas rodas de slam, são declamadas poesias livres, sem instrumental ao fundo. Já as batalhas de rima acontecem em duas categorias: as de conhecimento e as de sangue, ambas com uma batida ditando o ritmo. As batalhas de conhecimento partem de um sorteio de tema, em que os competidores devem seguir suas rimas dentro daquele tópico. Já as batalhas de sangue são livres e sem critérios, podendo, em alguns casos, a se tornar um ambiente hostil. 

Durante a pandemia, os grupos se adaptaram às restrições sanitárias e realizaram as batalhas de maneira remota
(Foto: reprodução)


As batalhas servem também como encontro e socialização. Grande parte dos coletivos escolhem um dia por mês para a competição. Ao final de cada batalha, é eleito um vencedor. As premiações utilizam recursos de editais públicos. 


O hip hop é uma das tantas culturas que existem no Brasil e no mundo. Carrega desde suas origens o poder transformador, seja ele individual ou coletivo. Uma cultura que acolheu as gaúchas Cristal, Laddy Dee e Negra Jaque, mas que ainda precisa ampliar o espaço às mulheres, para que elas, assim como os homens, possam cantar o que precisa ser dito. 


Nem todo dia o céu está azul
Você pode até não controlar a previsão do tempo
Mas ainda dá tempo de ser Maju
De ser sol como a América do Sul
Diva como Érika Badu
Líder como Winnie Mandela
Quem manda é ela
Viemos pra quebrar Tabu 

Mina – Negra Li 

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