É provável que você tenha lido o nome “Maria Lídia Magliani” ou simplesmente “Magliani” em alguma matéria no jornal ou nas redes sociais recentemente. Mas você sabe mesmo quem foi ela? O Mescla preparou uma reportagem para recuperar esta artista tão completa e motivo de orgulho para o Rio Grande do Sul. A reportagem procurou amigos, colegas e uma historiadora para contextualizar a importância da artista que também foi uma grande ilustradora de diversas publicações na imprensa.
“Magli”, como muitos se referem a ela até hoje, se destacou no cenário nacional das artes plásticas já a partir da década de 1960. Hoje, o legado da artista é reconhecido pelo vigor, vanguardismo, novidade, mas também por desafiar o seu público. Em 1997, ela declarou: “Eu gostaria de dizer às pessoas que veem os meus quadros: ‘Sinto muito senhores, não é agradável’”.
Maria Lídia Magliani era natural de Pelotas e morreu em 2012, aos 66 anos. Foi a primeira mulher negra a se formar no Instituto de Artes da UFRGS e se manteve uma artista atuante até o fim da vida. Magliani, que não gostava de ser reconhecida como “artista negra”, e sim apenas como “artista”, esbanjava ousadia, coragem e vigor artístico. Ela mesma dizia que fazia “arte para incomodar”.
Em março deste ano, a Fundação Iberê Camaro lançou a exposição “Magliani”, que ficou em cartaz de 19 de março a 31 de julho. A Fundação disponibilizou o catálogo da exposição, que foi dividido em volume 1 e volume 2. A mostra contou com mais de 200 itens sobre Magliani e mobilizou a mídia local a produzir uma quantidade notável de conteúdos sobre a artista além de depoimentos nas redes sociais.
O Mescla entrevistou pessoas que conheceram Magliani ou que tiveram contato com o trabalho dela em algum momento. Dentre elas está a Luanda Dalmazzo, formada em História da Arte pela UFRGS, autora de um artigo de conclusão de curso sobre a Magliani. A historiadora contou que teve um trabalho pesado para recuperar materiais e conteúdos sobre a artista. “Foi uma pesquisa exploratória bem intensa, tinha tudo espalhado, e não era só aqui (no RS)”. Para Luanda, inclusive, o fato de Magliani ter se mudado de estado várias vezes é um fator importante para entender o porquê da artista ficar tanto tempo esquecida ou não ter tido o devido reconhecimento.
Onda de resgate
Magli foi “discípula” de Ado Malagoli, amiga de Iberê Camargo e Caio Fernando Abreu, além de ter atuado no teatro com atores que tiveram projeção nacional. Como ilustradora, atuou no jornal Mulherio, foi diagramdora do jornal Folha da Tarde, e mesmo assim, apesar de circular em meios relativamente influentes, acabou sendo pouco reconhecida. Para Luanda, não há dúvidas que o racismo foi determinante para este apagamento.“Por mais que o discurso racista não seja explícito, o silêncio já é um discurso”, assinalou a historiadora, que acrescentou: “Ela viajou muito, morou em vários lugares diferentes, em diferentes tempos e também tem o racismo estrutural”.
A historiadora comentou ainda o fato da Magliani não ter, muitas vezes, documentado tantas vezes o próprio trabalho. “Ela não tinha o costume de documentar as obras dela, e isso não era só ela, como pessoa, mas, a época, mesmo”, ponderou Dalmazzo.
Questionamos Luanda para entender o porquê desta recuperação intensa surgir agora. Para ela, existem múltiplos fatores, mas tem a ver, também, com a questão de mais pessoas negras estarem dentro da universidade pesquisando sobre e indo atrás. É uma questão de representatividade. “Acabam mudando aos poucos os interesses de pesquisa das pessoas dentro da universidade, e isso acaba influenciando, também, no meio artístico, no geral. Mudam os interesses, mudam as pessoas que estão por trás das exposições”, assinalou.
Para elucidar essa questão, a historiadora também citou a exposição “Presença Negra no MARGS”. Luanda definiu esse momento como uma “onda de resgate cultural”. A exposição no Museu de Arte do Rio Grande do Sul (MARGS) também contou com obras da artista. Segundo Luanda, o MARGS é uma das instituições com maior quantidade de itens de acervo da Magliani, desde obras até matérias de jornais.
Uma artista na redação
Magliani trabalhou como diagramadora no jornal Folha da Manhã, publicado entre 1969 e 1980, pela Companhia Jornalística Caldas Júnior (CJCJ), em Porto Alegre. A Folha da Manhã também ficou conhecida como Folhinha, já que a CJCJ publicava outros dois jornais diários na capital, o Correio do Povo e a Folha da Tarde. Ela também ilustrou para Revista ZH, o Diário de Notícias e ainda colaborou para a Folha de São Paulo, quando residiu na capital paulista.
O jornalista José Antônio da Silva foi colega de Magli na Folhinha e trabalharam juntos em outros encontros. “A Folha da Manhã já era meio que um jornal ‘de vanguarda’ e tinha bastante gente talentosa, artistas, jovens, etc.”, contou.
“Em 1977, junto com escritores e ilustradores, etc., de vários pontos no Brasil, quase todos morando à época em Sampa, participamos de mais uma edição coletiva, chamda ‘Vício da Palavra’, em que a Magli também colaborou e eu fui um dos editores”, contou José Antônio. Juntos trabalharam, também, na publicação “Há Margem”.
“Usava um cabelo black, grande e meio avermelhado, e vestia-se bastante com preto – era uma presença marcante, além de sua arte e de seu conteúdo político e crítico. Meio sarcástica, como a época (Ditadura) exigia de todos que tivessem alguma consciência crítica. Seja como for, era solidária e tinha um senso de humor discreto e irônico.” – depoimento de José Antônio.
A jornalista, bibliotecária, museóloga e uma das diretoras gerais do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do RS (SINDIJORS), Jeanice Dias Ramos, foi amiga muito próxima de Magliani. Quando se conheceram, Maria Lídia trabalhava na Folha da Manhã e Jeanice no Estado de São Paulo. “A minha relação com a Magliani foi muito boa, porque nós éramos, praticamente, eu, ela e a irmã dela, as únicas negras que usavam Black Power, em Porto Alegre”, contou Jeanice.
Jeanice também contou que Magliani se deu bem trabalhando para a Folha da Manhã porque, segundo ela, além de ser uma boa desenhista, era muito rápida ao fazer as obras. Jeanice recordou: “Ela se notabilizou porque, imagina, o jornal fechava tipo 10h, 11h, e ela tinha que fazer todas as artes dentro desse período, desse horário, e as matérias iam chegando”.
“Ela tinha um volume de trabalho muito intenso, ela produzia muito, se dedicava muito. Ela era muito ordeira, muito profissional no que ela fazia. Ela não deixava arestas abertas, ela tinha uma capacidade incrível de produção”, relembrou a amiga.
Redações com vida, cores, bobagens interessantes e assuntos importantes
Circulando nas redações, no teatro e no meio artístico em geral, Magliani conheceu diversos escritores, jornalistas e intelectuais. Dessa forma, ela ilustrou capas de livros, como o de contos de Caio Fernando, “Inventário do irremediável”, de quem era muito próxima. A artista também produziu outras capas e ilustrações internas de livros de escritores como Sérgio Caparelli, Mariza e Scopel e Eduardo San Martin, com quem teve um relacionamento. “Na época fizemos dois ou três livros diferentes, mais ou menos com o mesmo pessoal – jovens poetas, contistas, ilustradores”, contou o jornalista José Antônio da Silva.
Magliani também ilustrou, com destaque, para o jornal alternativo e feminista Mulherio, idealizado por pesquisadoras da Fundação Carlos Chagas, a fim de ser um boletim de trocas entre grupos de pesquisa sobre mulheres. O Mulherio contou com a colaboração de grandes intelectuais como Lélia Gonzalez, Heloísa Buarque de Hollanda, Maria Rita Kehl e Ruth Cardoso.
Magli ilustrou para a revista porto-alegrense “Tição”, que circulou entre 1978 a 1982. A revista surgiu como um desdobramento do Grupo Palmares, de ativismo negro. Ali, abordava a questão do racismo na sociedade gaúcha e na sociedade brasileira. Ela também assinou ilustrações para “Versus” e “Paralelo”.
“Na década de 70 era usual existirem profissionais de outras áreas dos jornais. O curso de jornalismo recém estava começando”, afirmou a jornalista Jeanice. Ela explica que a irreverência para comunicar era muito mais que uma necessidade, e as pessoas do meio conseguiram dar uma resposta muito mais a altura do que se esperava. “As redações eram efervescentes, não essa frieza de agora, todo mundo num computador, não se falando, ou falando de computador para computador”, pontuou.
“Arte para incomodar”
Maria Magliani chegou a ser considerada uma das artistas brasileiras mais importantes durante a década de 1980, conforme os próprios curadores da exposição realizada na Fundação Iberê Camargo afirmaram no texto que acomapanha o catálogo da mostra. “Apesar do sucesso junto à crítica, seu trabalho, que nunca serviu para enfeitar paredes, jamais alcançou a monetização que lhe era devida”.
Ela foi uma artista completa. No teatro, além de atuar, também produziu cenários e preparou figurinos. Tudo isso sempre mesclado a um tom poético, assinalado em diversas frases, afirmações, entrevistas e cartas.
“Ela era uma pessoa que se dava muito bem no meio jornalístico e no meio artístico, também. Só que no meio artístico ela não era conhecida como ela é agora”, lamentou Jeanice. A amiga relembrou como Magliani se envolvia em muitas atividades ao mesmo tempo. “Ela fazia tudo ao mesmo tempo, ela desenhava, ela participava de sarau, ela era muito vigorosa”, conta.
Retratar a essência do humano
Mas afinal, por que apesar dos conteúdos das obras da Magli serem tão corajosos ela não queria ser enquadrada em nenhuma categoria? Ela não queria que finalizassem a obra dela puramente como antiracista ou feminista, por exemplo.
Por mais que possa se encontrar sentido nessas atribuíções, essas são leituras a respeito do trabalho dela. No entanto, segundo Luanda, Magliani sempre foi enfática em uma questão: “ela não gostava de atribuir o trabalho dela a coisas assim”. Talvez, ela não quisesse se enquadrar em apenas uma tela, uma cena. “Era o humano que estava transpassado por todas essas questões”, afirma a historiadora sobre o legado de Magliani.
A historiadora disse que a artista passou por diversas fases e modos de pintar, além de transitar por diversas temáticas, mas desde o começo da carreira a figura humana e a sociedade eram centrais, seja para abordar algo, seja para criticar. “Tem (trabalhos) sobre a mulher, sobre racismo, mas é uma coisa como um todo. Ela tem até, lá no começo, nos anos 70, obras criticando a tecnologia. Então, ela criticava tudo, basicamente”, brincou Luanda.
“Aquela série das gordas, eu acho que é uma coisa que fica para a posteridade”, assinalou Dias Ramos. Tanto para a historiadora quanto para a amiga jornalista, é o fato de Magliani retratar as temáticas em torno da existência que a fazem ser tão contínua no tempo, permanente e atual, possibilitando, hoje, diversas leituras.
“Eu acho impagável aquela série (das gordas), porque é de uma crueza e de um realismo que deixa a gente desconfortável. Isso eu acho muito importante no artista, deixar o outro desconfortável”, assinala Jeanice.
“A Magliani era uma pessoa iluminada, embora ela só se vestisse de preto”, brincou rindo a amiga. No entanto, Jeanice acrescenta, lamentando, – “Ela tem uma quantidade de material intenso e ela marcou época. E eu fico com pena dela não ter sido reconhecida em vida. Ela não teve reconhecimento e ela era uma operária. Ela produzia, produzia, produzia e nunca ninguém chegou e falou o que falam agora dela, que ela era super importante, que ela era significativa, que ela era marcante”.