Por Paola De Bettio e Joana Troian
A Mostra ocorreu logo após o término do semestre com a exibição de curtas, vídeo clipes e animações em stop motion feitas pelos alunos. A edição pode ser feita novamente presencialmente, em uma icônica, clássica e querida sala de cinema portalegrense, na Cinemateca do Capitólio. Neste semestre, novas produções serão realizadas e apresentadas em nova Mostra.
Foi o momento para prestigiar os novos cineastas cheios de talento e criatividade e homenagear o ator Clemente Viscaíno, que acompanha as produções dos alunos “cravianos” desde a primeira turma, iniciada em 2003 e formada em 2006. Clemente participou do curta “O Último Almoço de Domingo”, gravado em 2005. Para alguns estudantes também foi a chance de comemorar o fim de uma importante etapa – a graduação. Sem falar na retomada da vida nas ruas e das salas de cinema. Tudo isso trouxe a energia e a vitalidade da sétima arte.
A mostra incluiu vários gêneros
Cada um dos dois dias contou com uma programação. Cada programa contava com cerca de três curtas e dois vídeos clipes ou dois stop motions. Ao fim de cada um deles os diretores (alunos) debateram com um professor mediador e um convidado especialista.
Esta edição tinha trabalhos realizados desde 2020 que não puderam ser mostrados por conta da pandemia. Ao final do ano, está prevista mais uma edição com aproximadamente 28 curtas-metragens.
A escola de cinema do CRAV
O terceiro ano do curso é o momento de criar as produções maiores, onde todo o aprendizado da graduação até então culmina na realização de um curta-metragem de ficção. O quarto ano do curso é dedicado aos estágios supervisionados, quando o aluno experimenta o mercado de trabalho. Cada estudante escreve e dirige seu próprio curta. Além do processo de direção dos próprios filmes, eles ainda vão trabalhar como assistentes de direção e produtores no filme de outro colega. Estas são as funções principais que todos exercem. Para complementar a formação, cada estudante pode escolher duas áreas para se especializar, área esta que vai exercer no curta-metragem dos colegas. As especialidades são direção de fotografia, direção de arte, som, montagem, animação e roteiro.
Um dos coordenadores do curso, Milton do Prado, enfatiza esse aprendizado: “O 3º ano do curso é um ano muito intenso. Eles fazem os filmes nos finais de semana. Eles têm aula durante a semana e todo sábado e domingo eles estão ali. Todo sábado e domingo a gente tem um ou dois filmes sendo feitos e os alunos se revezando nas funções”, comenta Milton.
O gênero documental
A sala já estava bem ocupada na abertura, para assistir aos documentários. Ao longo da primeira tarde o gênero documentário foi dominante. De antemão, um dos coordenadores do curso, o Milton, frisou a importância de ocupar o Capitólio para prestigiar o audiovisual. O tradicionalíssimo espaço de cinema porto-alegrense, com arquitetura ímpar no centro da capital, e que vive tempos tenebrosos, por serem espaços públicos de arte e estarem recebendo pouco investimento, precisando sempre resistir.
Antes dos primeiros documentários serem mostrados, foi a vez dos clipes das músicas “Deságua” pela Kaya Rodrigues e “Desilusão”, da banda Almirantes. Essas produções foram feitas pelos veteranos do curso.
Aliando a arte de contar histórias no teatro e a arte do cinema, foi apresentado “Começar, continuar e Permanecer”. No “cenário” de pandemia, quatro atores estiveram no Teatro de Arena de Porto Alegre para refletir sobre suas trajetórias histórias e como a arte aconteceu em meio ao cenário caótico da pandemia.
O segundo curta documentário daquela sessão foi “Boombap: poesia viva”, que trouxe Tiatã, Elle P., Rainha Ju e Rafuagi para traçar ritmos da poesia marginalizada dentro do hip hop e do slam. Foi lindo escutar sobre união, representatividade, força e coragem com a sensibilidade destes artistas.
Para finalizar a sessão, “Esse aqui é o meu lugar” trouxe três gerações para falarem sobre a cena do skate em Porto Alegre. Sérgio Marreta, Fabrício Souza e Clara Strack narraram suas histórias pessoais, e traçaram a jornada por afirmação de espaço na cidade de Porto Alegre.
O arremate do primeiro programa foi o debate com a documentarista Thaís Fernandes, que trouxe sua veia jornalística para entender o processo de criação dos documentários, desde a concepção da ideia até a pós-produção.
A segunda parte da tarde contou com os clipes das músicas “Drink no Inferno”, da banda Fumaça Urbana, e “Amor Líquido”, do Projeto Hare. Logo depois veio “Geração da Consciência”, que trouxe de forma extremamente sensível e bem elaborada o relato de ex-integrantes de organizações militantes sobre como começaram a lutar contra a Ditadura Militar no final de regime. A grande sacada foi que estes relatos foram contados através do rosto e voz de quatro jovens atores, com a mesma idade que os militantes tinham no período. A música ficou com Nei Lisboa, que teve um de seus irmãos assassinado pela Ditadura Militar e cedeu os direitos para o filme.
Enquadradas pela câmera, Gladis e Julia refletem sobre como é a sua relação com a cozinha, as histórias e receitas familiares em “Histórias de Cozinha”. Por fim, “Uma Nova Sinfonia” trouxe a pulsação linda da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (OSPA), onde o Maestro Evandro Matté e alguns músicos contaram como foram as atividades durante a pandemia e a retomada das atividades presenciais.
O debatedor foi o pesquisador e crítico Maurício Vassali, que também quis entender sobre o processo de produção e da relação dos diretores com os atores e suas emoções, além dos desafios inesperados de uma produção audiovisual.
Os documentários ficaram marcados pelas temáticas musicais, afetivas e poéticas, mostrando uma antítese importante na arte de contar histórias: sensibilidade com força.
A vez da ficção
As duas primeiras animações feitas em stop motion foram “Acendi ao vê-la”, da Eduarda Brum, que brinca com as palavras e traz um non-sense divertido e criativo; e “Atrás da Porta”, do Maicon Ferreira dos Santos, que trouxe o suspense e os delírios que os medos podem criar na gente. As duas animações tinham cerca de 1min30.
“A Valsa” foi o primeiro curta de ficção a ser exibido. Com roteiro sensível, afetivo e amoroso, os personagens Lucrécia e Benedito decidem renovar seus votos de casamento no dia de suas bodas de ouro, mas não esperam os truques que a saudade pode pregar. A plateia também não esperava por esse truque, que ficou arrebatada com a história.
“Abissal” traz a personagem Dora, que encontra o corpo de um mergulhador na beira da praia. No entanto, ela é a única que o vê. Com o passar dos dias, ela não consegue discernir entre a realidade e sua paranoia.
Por fim, “Pelos Olhos Teus”, também traz brincadeiras sutis com as ideias das palavras, já através do título. O curta traz uma história corajosa de amor e descoberta, através da personagem Amélia, que vive com a mãe cega. Após um encontro cheio de frustração, ela conhece Marjorie, uma mulher que desperta sentimentos nela.
Estiveram presentes na sessão os atores Clemente Viscaíno e Vilma Loner, de “A Valsa”, Isabella Lacerda, Paulo Flores e Clélio Cardoso, de “Abissal”, e Gabriela Iablonovski, Arlete Cunha, Isadora Pillar e Juliano Rangel, de “Pelos Olhos Teus”, além dos músicos Rafael Kurai, Gabriel Thomsen e Madblush, que junto da diretora Natália Polla compuseram a trilha do curta.
Clemente Viscaíno recebeu uma homenagem, que contou com um clipe de suas participações em diversos curtas do CRAV, no qual ele colabora desde a primeira turma, em 2001, na qual um dos coordenadores do curso, Vicente Moreno se formou, inclusive. Clemente disse que adora colaborar com os alunos do CRAV, porque estes alunos são os diretores, roteiristas e produtores do futuro. Ele contou inclusive que já trabalhou com produções da Rede Globo onde encontrou alunos de outras turmas. Clemente participou de cerca de 27 filmes, entre eles “Como Nascem Os Anjos”, “Memórias Póstumas”, “Carandiru” e “Nosso Lar” e de novelas como “Dancin’ Days”, “Por Amor”, “Anjo Mau” e “Caminho das Índias”.
Os três curtas foram o trabalho de final de curso de três alunas-diretoras. Para compor o debate, a pesquisadora e crítica Juliana Costa trouxe questões e análises para a conversa.
Dois dias de exibições
O segundo dia de Mostra contou com as apresentações de animações e os curtas-metragens.
Stop motions e curtas ficcionais
“Elevador”, é animação stop motion dirigido pelo Leonardo Kotz. A única sinopse possível é “Sobe ou desce?”. “Embaçados” é a animação dirigida por Luis Simioni, na qual “um olho” descobre que não enxerga bem.
Os curtas-metragens exibidos na primeira sessão de quarta-feira foram Astronauta Azul, escrito e dirigido por Nicole Vaz, que conta a história de um menino autista que vive a perda da mãe e os desafios que o pai passa para compreender o filho; Livre Ária, com direção de Gabriel Thomsen e roteiro de Gabriel Thomsen e Felipe Trema, que aborda a história de um jovem que tenta escapar da realidade distópica através de memórias do passado; Esboço, escrito e dirigido por Gabriel Picinatto, sobre um homem que se encontra preso em uma sequência de histórias que confundem realidade com fantasia; e Élan, com direção e roteiro de Felipe Trema, em que o personagem André vive solitário até precisar tomar conta do cachorro da vizinha.
Os debates tiveram foco nos curtas-metragens de ficção, sendo o principal da Mostra, onde foi foi possível conhecer um pouco mais das histórias e o processo de elaboração dos filmes. Autismo, ficção científica, realidades distópicas e reconexão com o mundo foram os temas principais dos curtas da primeira sessão do dia 13. O debate foi conduzido pelo diretor e roteirista Felipe Lesbick, e participaram Nicole Vaz, Felipe Trema e Gabriel Thomsen.
Nicole Vaz, roteirista de Astronauta Azul, diz que se inspirou em seu irmão mais novo, que é autista. Para ela, a elaboração da história seria uma forma de homenagear o irmão e abrir espaço para conversas sobre o autismo: “Eu gostava daquilo e pensei em usar esse espaço para ele, para homenagear ele, colocar um pouco ele na tela. O autismo tem muitas variações, e eu quis botar a minha perspectiva como irmã e em como o autismo funciona com ele. Cada autista tem essa questão de ser muito diferente entre si”, comenta a diretora do curta.
No processo de direção, Nicole priorizou planos que deixassem a câmera na altura dos olhos do personagem, interpretado por Lorenzo Hoffman. Ela frisa o quando seria importante se colocar na altura dele para ouvir e compreender. A captação de som também foi pensada com cuidado, pois o som é percebido de forma muito particular: “A gente não queria somente captar som, porque o som é algo que vai ser percebido de forma totalmente diferente nessa questão do autismo. Quando a pessoa pode estar nervosa, o som aumenta, tudo fica muito alto. Tudo tem uma percepção diferente”, explica.
Élan foi o curta-metragem que contou com a Paçoca, a cachorrinha que viveu Peteca na história. André vivia solitário e a vizinha percebeu uma forma de ajudá-lo a se recuperar, com a ajuda de Peteca. O diretor e roteirista Felipe Trema conta que queria uma história que fosse de fácil identificação, que tivesse uma linguagem clara e econômica. Nos ensaios com os atores Fábio Castilhos e Ida Celina a conversa fluía e, para ele, parecia um encontro familiar. “Eles leram o roteiro e quando a gente foi fazer as discussões, eu estava vendo os personagens na minha frente. […] Às vezes eu tinha a sensação de que era um encontro familiar, parecia que eu estava encontrando pessoas que já tinha visto antes”, celebra Felipe.
Paçoca foi a que mais improvisou, interagindo com um dos seus brinquedos, uma bolinha, em cena. “Quando a gente foi pra filmagem tudo funcionou. A cena da bolinha foi improviso. Ela foi lá e pegou a bolinha sozinha. E pensei “esse cachorro vai ganhar um Oscar”, comenta.
No curta Livre Ária, o diretor e roteirista Gabriel Thomsen contou que queria criar uma atmosfera futurista, distópica, e abordar a liberdade através da música. O principal, Levi relembrava suas memórias através de uma flauta, e Gabriel conta que o processo de ensaio foi importante para delinearem as intenções dos personagens. “Enquanto a gente revisava o roteiro e falava as falas, a gente conseguia melhorar mais ainda, dar mais nuance e profundidade às personagens”, explica. Pensando no som, Gabriel conta que a ideia era criar uma ambientação de futuro. “Era pra ter uma premissa mais futurista, daí sons que tinham a ver com uma dimensão mais robótica. E o lugar que a gente gravou também ajudava bastante porque dava uma ambientação mais futurista”.
Para encerrar a programação
A protagonista do stop motion Memento Mori é uma aranha. A animação teve direção de Ângela Roveda, e a sinopse é “sem essa, aranha”. Em seguida, um peixe atravessa o deserto no stop motion O Peixe, dirigido por Beatriz Potenza.
A exibição dos curtas da segunda sessão do dia começou com Ruptura, escrito e dirigido por Júlia Heerdt, que conta a história de Sara, uma adolescente que convive com a sensação de não-pertencimento e, em uma festa, se aproxima de Pedro. Em seguida, o curta Eco, com roteiro e direção de Bárbara Lima, que retrata as histórias daqueles que habitaram. Utopia traz a história de Gregor, que vive sozinho e só conversa com Marge, um robô do setor de RH da empresa. Gregor um dia se espanta ao ver uma gravura de si mesmo. Para encerrar a Mostra, o curta Super-Guri trouxe risadas no público com uma comédia em forma de documentário, em que documentaristas acompanham o novo vilão de Porto Alegre, o Gado Gaudério, em sua tentativa de manchar o home do herói da cidade, o Super-Guri. O debate da sessão foi conduzido por Daniela Strack, assistente de direção e produção em diversos projetos de cinema, televisão e publicidade.
Ruptura, escrito por Júlia Heerdt, foi inspirado em uma história real de superação, que ela resolveu levar para as telas. Ela conta que tinha na cabeça algumas das imagens de como seriam as cenas e que quando o roteiro já estava encaminhado e estavam iniciando a pré-produção para as gravações, a pandemia alterou os planos. As filmagens foram adiadas e os estudantes se dedicaram ao TCC para, somente depois, retornarem às gravações. Para ela, a dinâmica de gravações foi desafiadora e ela contou sobre o trabalho em outras produções da turma.
“A gente roteiriza o filme que a gente dirige, a gente produz um filme, a gente faz assistência de direção em um filme, e cada um participa nas suas especialidades. Eu escolhi arte, então fiz arte em outros filmes. É uma doideira. Enquanto a gente está fazendo nosso filme, já estamos produzindo outro, e já pensando em outro. Então foi meio que uma doideira, mas foi muito legal”.
O curta Eco trabalhou a memória de um ambiente. A diretora e roteirista Bárbara Lima conta que quis trabalhar as diversas histórias que aparecem no filme a partir de fragmentos: “Eu busquei não explicar nenhuma história, mas dar fragmentos pensando nessa questão de como a gente não conhece a si nem aos outros completamente e quantas coisas não acontecem escondidas entre as quatro paredes que, de uma forma ou de outra, acabam ecoando tanto em outras pessoas como nos próprios ambientes. Então quando você entra num lugar novo, ou se muda, quantas pessoas já não passaram e deixaram pequenas marquinhas?”, explica.
Utopia foi um curta-metragem que surgiu a partir de um desenho. Beatriz Lopes escreveu e dirigiu o curta, e conta que a ideia inicial surgiu de uma ilustração que fez do personagem principal, Gregor. “Eu gostava muito da estética de um filme de ficção científica. Comecei a pensar e surgiu o Gregor, e eu o desenhei”. Buscando uma motivação para o personagem, ela percebeu que os desenhos poderiam ser uma chave. Na orientação aos atores, Beatriz propôs exercícios aprendidos durante o curso e, por também ser atriz, quis trabalhar a construção do personagem com o ator, Alexandre Vargas. “Sou atriz e gosto muito de direção, de pensar coisas pro ensaio. Eu queria muito trazer um pouco deste peso pro personagem, e no ensaio, deu para passar para ele o peso que eu queria que o personagem carregasse, e ele também contribuiu muito trazendo ideias”.
O curta que encerrou a Mostra foi Super-Guri, uma comédia que conseguiu trazer risos da plateia com o formato de documentário. O diretor Telson Reis Júnior conta que, no processo de escrita, foi transformando os personagens para que fosse criada uma identificação, para que as pessoas gostassem do vilão Gado Gaudério e seu comparsa Quero-Quero. “No processo de tentar encontrar cada personagem eu tive reuniões online com os atores, pra entender mais ou menos a ideia da cena, qual é a personagem, qual a voz deles”, explica. Telson teve receio na hora da estreia, imaginando se as piadas dariam certo, mas as risadas da sala de cinema puderam comprovar.
O impacto da pandemia nos roteiros
Um dos coordenadores do CRAV, Milton do Prado, explicou que a pandemia fez com que muitos roteiros fossem adaptados e as gravações, adiadas. Atenta aos protocolos da Associação Profissional de Técnicos Cinematográficos, a produção tinha que estar sempre de máscara Pff2. se houvesse atores no curta, somente um poderia ficar sem máscara. Uma das produções incorporou as máscaras à história, como foi o caso de Astronauta Azul, em que os personagens as usavam em cena.
Em alguns curtas, há cenas em que dois atores conversam, sem máscara, e Milton explica como foram gravadas: “Foram filmados separados e, depois, foram juntos na pós-produção. Foi filmado um ator com máscara e o outro sem, com a câmera na mesma posição, mesma luz, aí inverte e filma de novo”, explica Milton. Adaptar seus roteiros, repensar as histórias, tudo isso fez parte da realização das produções no meio de uma pandemia. “Essa turma está muito de parabéns! Eles foram absolutamente fantásticos para fazerem filmes legais apesar de todas essas restrições”, celebra o coordenador.