Um dos grandes nomes da música brasileira hoje, Criolo criou uma estética muito própria, e fez do rap um espaço para incorporar ritmos como o samba, a MPB, o reggae, e outras pulsações melódicas. Em 2019, sua música “Boca de Lobo” foi indicada ao Grammy Latino. Músico, ator, cidadão ativo, Criolo está em Porto Alegre para apresentar seu novo disco. O show será neste sábado, no Auditório Araújo Vianna.
Mas antes ele participou do episódio especial do EduVoices desta semana, podcast do Instituto para Inovação em Educação da Unisinos. O artista fala de dois temas centrais ao Instituto, que são arte e cultura como mobilização social, seja nos espaços formais como informais da educação. Criolo respondeu às questões encaminhadas pelo decano da Escola da Indústria Criativa, Gustavo Borba. O papo foi transcrito para o Mescla. Boa leitura!
Gustavo Borba – Tu vens de uma família que tem como mãe uma professora. Tu poderias nos contar um pouco como os processos de educação formais e informais foram acontecendo em tua vida e te construindo enquanto pessoa?
Criolo – Começamos muito cedo em casa. Minha mãe é autodidata, ela foi se virando sozinha. Meu avô a alfabetizou quando ela tinha 5 anos de idade. Houve um início de alfabetização e logo ele veio a falecer. Então ela pegou esse gosto pela palavra. Nasceu em uma família muito simples, muito humilde, da cidade de Fortaleza, no Ceará, em 1955. Ele tinha um pequeno curtume e, naquela época, tudo se embalava em papel jornal, e no açougue da mesma forma. Como ela era alfabetizada com o jornal que embrulhava a carne, toda a vez que ela voltava do açougue, voltava correndo o máximo que podia, porque ela ficava agoniada vendo o sangue lhe tomando as palavras. E assim começa a história desse ser de luz chamada Maria Vilani, assim começa sua paixão pelas letras, pela nossa língua, nossa gramática, nossa literatura e nossa história. Assim, dentro de casa, eu sempre fui muito incentivado a ler, muito incentivado a estar atento ao que o texto nos propõe, e se ele faz sentido. Depois dessa vivência – na realidade, essa vivência é contínua lá em casa –, viemos para o ensino formal. Estudamos sempre em escola pública, e foi dada a continuidade do que ela já fazia dentro de casa. Também participávamos de uma associação de bairro que nos oferecia algumas oficinas culturais e, depois, no circo escola Grajaú, onde pude ter contato com outros ambientes de arte que não a literatura. Lá nasceu o sonho, depois de 4 anos naquele ambiente, de também ser um educador social, de ser uma pessoa que pudesse desenvolver alguma coisa no bairro e dar um retorno. Dentro desses dois ambientes, da escola pública e das organizações que nos ofereciam algum tipo de alento, algum tipo de apoio, companhia, cursos e alimento, porque era muito importante para a gente o complemento do que esses dois espaços nos proporcionavam de comida. Passávamos uma situação muito difícil, então era muito bom ir para a escola porque sabíamos que íamos comer, e quando nós tínhamos as atividades, que eram duas vezes por semana, fora da escola, tínhamos reforço alimentar, muito importante, essa construção da massa que compõe nossa estrutura física, dá suporte para que os pensamentos venham a ser construídos, por isso que as vezes eu acho muito cruel quando se cobra um jovem sobre seus êxitos, é que de barriga vazia é muito difícil pensar, e mesmo assim a gente consegue criar coisas incríveis, mas é muito cruel essa rotina.
Borba – Um dos pontos principais quando falamos de educação é a importância da arte e da música para a formação dos jovens. Como tu vês isso hoje acontecendo no Brasil, especialmente como uma forma de mobilidade social?
Criolo – Essa educação acontece também de modo formal e informal. Acredito que esse informal, nosso criativo, plural, que são essas trocas naturais que acontecem quando a gente se apaixona por determinada expressão de arte, no meu caso o Rap. O Rap me abriu portas para a música do mundo, a gente tem uma construção de ambiente maravilhosa porque a gente não se sente mais só, e quando a gente não se sente só a gente se sente forte, e quando a gente percebe que existem outras pessoas que estão gostando do que a gente gosta, é como se a gente fizesse parte de um grupo, como se a gente não precisasse mais lutar por aceitação. Até que em determinado momento esse grupo também cria suas subdivisões e, por muitas vezes, você também tem que ficar provando algo: quem escreve melhor, quem rima melhor, quem tem as melhores ideias, e a gente acaba saindo do ambiente do que é essa construção maior, do todo, e a gente vai aprendendo a lidar com estas outras situações que são colocadas. A vida é um tanto assim também, um reflexo social desta esteira de comando, que propõe começo, meio e fim. A música, além de lhe oferecer essas sensações de não se sentir só, de se perceber capaz de construir algo, de fazer parte de algo, também de algum jeito lhe ajuda a como lidar com essa sociedade contemporânea, extremamente competitiva e brutalmente desigual.
Borba – Gostaria de entrar agora em uma questão relacionada ao teu novo disco, que considero uma verdadeira obra prima. O disco fala muito sobre a vida e a morte em nosso país, sobre intolerância com religiões, racismo, impactos da covid, entre tantos outros temas que nos fazem refletir e ter vontade de agir. Como foi a construção deste álbum?
Criolo – Muita dor, muito medo, muita tristeza no coração. Esse impacto de se perceber frágil, se perceber sozinho. Eu perdi minha irmã, eu perdi tantos amigos e amigas, quase perdi meus pais. E a gente perde um tanto da gente quando essas pessoas se vão, e eu já vinha de um processo de uns 3 anos, 4 anos antes do “Sobre Viver” vir para o mundo, de me questionar muito: será que eu conseguiria escrever, ainda? Será que eu conseguiria desenvolver um rap, uma canção? Eu não sabia que ainda tinha jeito. Por muito tempo eu me questionei: será que eu ainda sei? Ou será que eu ainda tenho força? Eu pensei que eu não fosse mais conseguir fazer um outro álbum. Então, esse álbum vem com essas camadas de emoções e também com muita revolta: o país que mais persegue a comunidade queer no mundo, um dos países que mais mata jovens pretos e pretas, um país que fez um pacto de aniquilação aos originais da terra, um país que não aceita o outro em sua singularidade, em sua naturalidade, nós vivemos um ambiente extremamente hostil. O rap já está há 30 anos gritando isso. Trinta anos. O Rap, essa energia de força jovem, de força agora madura contemporânea, que vem apresentando outras vertentes, outras vozes, outras histórias, outros sabores. Vem gritando isso, falando do tanto que nosso país é desigual, fala sobre a perseguição das religiões de matriz africana. É um pedido a reflexão, é um grito de socorro e um chamado em urgência para à reflexão, para dizer que ainda existe caminho, que existe possibilidade, que nós temos coisas incríveis para construir juntos e que a juventude de nosso país é uma juventude incrível, cheia de amor, cheia de desejo de mudança e de transformação. É um álbum de fé, de muita fé, de um olhar para o futuro e de acreditar que é possível ter dias melhores.
Borba – Essa perspectiva de um álbum de fé, de olhar para o futuro, mostra possibilidades de transformação, excelente. Eu queria entrar na perspectiva da pandemia, vivemos em um país onde mais de 676 mil pessoas já perderam a vida devido à covid-19. Muitas famílias, incluindo a sua, foram fortemente impactadas por isso. Tu achas que enquanto nação, aprendemos algo com esse período?
Criolo – Eu acredito que de algum jeito, as humanidades foram percebidas. Uma pessoa que era um tanto apática nas causas sociais, nas questões humanitárias, se percebeu querendo contribuir, querendo ajudar, querendo fazer parte de uma coisa maior. Se percebeu forte, de que pode estender a mão, de que pode contribuir de algum jeito. Acredito que para outras pessoas não, é uma coisa pessoal. Para muitos a única preocupação era quando vamos poder ligar nossos brinquedos, para continuar brincando porque está chata a vida. Reclamam como se o mundo fosse um grande parque de diversões, onde todo mundo pode tudo, e isso não corresponde à nem 1% da população. Mas acredito que até nesse lugar, nesse lugar que se põe distante do Brasil, que se põe distante da realidade do planeta, existem corações que foram impactados e é nisso que eu quero acreditar, é nisso que a gente põe a nossa energia. Nesses 1% existe pessoas que com uma assinatura no papel definem a vida de uma nação inteira: que comida vai ter na creche de uma criança na favela do Brasil? Que avô, que avó vai poder chegar em um hospital público e ser atendido e não morrer em uma fila? Essas pessoas têm nas mãos vida e morte dos filhos da nação. Então, eu não quero acreditar que todas as pessoas estão com o seu coração fechado e não perceberam que a transformação também passa por elas.
Borba – Eu queria que tu falasses um pouquinho da nova turnê. Os teus shows têm uma intensidade única, e colocam muitos sentimentos em pauta, mas são costurados pelo amor, pela sensação de coletividade. O que dá para esperar desta turnê?
Criolo – Eu acredito que nossa fome é de viver. De onde eu venho a gente vê a morte todo dia, mas para muita gente isso é novidade. Eu percebi que as pessoas estão com fome de vida, pois perceberam que a vida é muito frágil. E esse tour carrega esse sentimento de amor a vida, de amor ao outro, do melhor sentimento possível sendo esparramado nesse palco, para levar as pessoas a nossa melhor energia, dentro destas canções que foram feitas com todo coração.
Borba – Queria te perguntar ainda se podes dividir com nossos ouvintes algum livro que estejas lendo, seriado ou filme que tenha visto, ou disco que estejas ouvindo.
Criolo – Eu estou terminando de ler “Memórias de Maria e um pouquinho de mim”, que acabou de ser lançado pelo selo Capsianos, um selo literário do extremo sul da zona sul de São Paulo, do Grajaú, livro de minha mãe amada, que estou terminando de ler. É o primeiro romance dela, seu sétimo livro. Convido todos vocês a conhecerem a obra, e quem puder seguir ela nas redes, o Instagram dela é casa_do_silencio, onde ela deixa pensamentos, reflexões, fala dos livros, não apenas dos livros dela, mas fala dessa produção literária que acontece no Grajaú. A zona sul de São Paulo é incrível, tem uma produção literária magnífica, existem feiras literárias, encontros literários, temos a querida Elisandra, o grande mestre Ferrés, temos a Cooperiga, com o queridíssimo Sergio Vaz, são muitas pessoas desenvolvendo suas atividades no extremo sul da zona sul. Então, através do casa_do_silencio, pode abrir para vocês um portal para encontrar muito, mais sobre essa literatura feita nestes espaços incríveis de amor, de alegria e de palavra. Eu tenho aqui, pertinho de mim, o livro “Bahia De Todos Os Negros: As rebeliões escravas do século XIX”, de Fernando Granato. Recentemente eu li o livro “O avesso da Pele”, de Jeferson Tenório, grande escritor porto-alegrense, ganhou o prêmio Jabuti em 2021. Nós nos encontramos por conta do lançamento de um box de livros chamado “Vozes Negras”, são livros incríveis e o livro dele faz parte deste box, e tive o prazer e a honra de conversar com ele sobre a obra. É sempre bom visitar o “Colecionador de pedras”, do Sergio Vaz. De disco, eu acabei de ganhar o vinil do Elo da Corrente, o Rosa de Jericó, o disco do Síntese, chamado “Ambrosia”, e o disco “Astral”, do Seletores de Frequência, ficam essas dicas para vocês.
Borba – Criolo, muito obrigado por esse momento.
Criolo – Muito obrigado. Muito amor para todos vocês, muito carinho, muita alegria. Vamos com tudo e se possível, se tiverem um tempinho, dia 23 de julho, que possamos nos encontrar. Colem no show, levem a família, vamos gritar, vamos dançar, sorrir, brincar e se abraçar. Cada vida é importante. Um beijo no coração de todos. Um abraço!