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Cooperativismo de plataforma marca a realização de seminário presencial promovido pelo DigiLabour no campus Porto Alegre
"O evento reuniu pesquisadores e debateu as várias faces do assunto, sob a perspectiva da pesquisa e dos movimentos sociais, entre os dias 21 e 23 de junho"
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A Unisinos campus Porto Alegre recebeu o Seminário Presencial Cooperativismo de Plataforma e Políticas Públicas na última semana. As múltiplas atividades da programação marcaram a retomada presencial dos eventos promovidos pelo Laboratório DigiLabour, grupo de pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação (PPGCOM) da Uni, coordenado pelo professor Rafael Grohmann. Na ocasião, estiveram presentes pesquisadores e estudantes, além de membros de cooperativas de trabalho de diversos lugares do país e do mundo que se propuseram a pensar e discutir o futuro desse tipo de organização e as possibilidades que regem essa realidade no Brasil.


O Seminário é a primeira realização presencial do Laboratório de Pesquisa após o início da pandemia. Antes disso, aconteceram quatro eventos online, que em breve estarão disponíveis no canal do DigiLabour no YouTube. Apesar das atividades terem continuado, a reunião da última semana foi especial, porque recuperou o contato mais próximo entre os participantes do evento, vindos de vários lugares do Brasil e do mundo, que puderam se conhecer de perto e trocar experiências. A equipe do Mescla acompanhou vários momentos legais ao longo da programação do Seminário e traz aqui uma reportagem ensaio sobre o que rolou. 

Terça-feira (21): Conhecendo as cooperativas



A cobertura do Seminário pelo Mescla começou às 10h30. Subir até o oitavo andar do prédio da Unisinos de Porto Alegre e encontrar a sala cheia de pessoas atentas e querendo compartilhar informações e conteúdo foi um alento depois de tantos eventos marcados pelo distanciamento físico. Aliás, “troca” é uma boa palavra para definir o evento e o tema do cooperativismo. 


A abertura institucional contou com uma breve fala do professor Rafael Grohmann, que em seguida passou a palavra para Miguel Rossetto, que já foi ministro do Trabalho e Previdência Social, do Desenvolvimento Agrário e da Secretaria-Geral da Presidência, além de vice-governador do RS na gestão Olívio Dutra e sociólogo por formação. Junto a isso, o ex-governador do Estado Tarso Genro enviou um vídeo parabenizando o evento e salientando a importância do tema. 


Os trabalhos foram iniciados com a apresentação de Joana Varon, pesquisadora e diretora executiva da Coding Rights, uma organização feminista que se dedica a promover a compreensão sobre o funcionamento das tecnologias digitais, tentando reparar as diferenças de poder inseridas no seu desenvolvimento, uso ou regulação, especialmente aquelas que reforçam desigualdades de gênero.

Joana Varon durante exposição sobre a Coding Rights (Foto: Paola de Bettio)


Joana apresentou oOráculo para Tecnologias Transfeministas, projeto desenvolvido de forma colaborativa, no qual foi elaborado um jogo de cartas para projetar ferramentas em futuros especulativos, questionando sistemas de Inteligência Artificial. Além das questões sobre justiça social, o oráculo visa justiça socioambiental e fomenta a economia alternativa (e criativa!). 


Em seguida, Aline Os apresentou o coletivo Señoritas Courier. Ela é fundadora do coletivo de mulheres e pessoas LGBTQIA+, fundado em 2015, que faz entregas de bicicleta na cidade de São Paulo. As Señoritas Courier são uma alternativa às grandes plataformas digitais. 


Aline é ex-professora universitária e passou por diversas precarizações do trabalho ao longa da própria trajetória. O Señoritas surgiu a partir do projeto “Selim Cultural” – também idealizado por Aline –, que promove passeios de bicicleta para conhecer roteiros culturais em SP com voluntáries que estudaram os temas e promovem estes roteiros como “guias”. 


Com dificuldades para pôr isso em prática e com obstáculos na vida dos integrantes do projeto, Aline começou a fazer entregas de bicicleta, unindo a necessidade de ganhar dinheiro com o amor por pedalar. “Eu fui desenvolvendo metodologias”, explica. Nos trajetos ela começou a pensar em outras pessoas que poderiam se unir, como outras mulheres desempregadas, que, além da falta de emprego e precarização do trabalho, precisam enfrentar o machismo e as triplas jornadas, muitas vezes.

Joana e Aline no bate-papo que se deu após a apresentação de ambas (Foto: Paola De Bettio)


Em seguida, os aplicativos começaram a surgir e as disputas e exclusões começaram a piorar. Na época, Aline estava empregada por uma empresa e chamou amigas para trabalharem junto. No entanto, ela conta que a equipe era extremamente machista, o que dificultava o trabalho, com provocações e comentários preconceituosos. “Um dia eu ‘startei’ fazer um grupo só de mulheres e pessoas LGBT para fazer entregas, porque era muito legal. Para mim era divertido, se eu já pedalava um monte sem ganhar, pedalar ganhando então…”.   


Com a emergência dos aplicativos, o valor das entregas caiu muito. Segundo Aline, as pessoas acham que a entrega de bicicleta é uma entrega barata. “Entrega de bicicleta é uma entrega economicamente viável. A gente precisa trocar a palavra”, frisa. As dificuldades em cima da bicicleta são muito maiores do que as de quem faz em moto ou carro, já que não tem freio ou acelerador, banco confortável e lidam com o sol e chuva direto. No entanto, este tipo de entrega deixa de emitir enormes quantidades de carbono, o que impacta e beneficia positivamente a todos. 


As Señoritas surgiu de fato quando Aline não pôde fazer uma entrega e publicou um relato nas suas redes sociais. “Fiz uma postagem falando que tinha uma entrega para fazer e queria passar para uma amiga. Já tinha muitas amigas de bike e não queria passar para mais um homem”, comenta. Ela disse que a postagem ganhou mais de dez comentários em poucos minutos, o que originou um grupo de WhatsApp, e que hoje mais de 60 mulheres e LGBTQIA+ já passaram pelo coletivo. Hoje, são nove pessoas que se organizam para fazer as entregas.  

 

“Precisamos falar sobre a valorização correta do nosso trabalho” – Aline Os 


A tarde do primeiro dia  



Participantes de diversas localidades do estado, do país, e até mesmo da Espanha, como o representante da cooperativa internacional Mundukide, Natxo DeVicente, vieram para o seminário. Professores universitários, pesquisadores, sindicalistas, representantes de movimentos sociais, políticos, empreendedores, promotores, advogados, agrônomos, representantes de empresas, desenvolvedores, entre tantos outros, lotaram as salas 805 e 806 da Uni. Após as apresentações, que ajudaram todos a se conhecerem e criarem um clima amistoso ao longo dos demais dias do seminário, o painel “Coletivos e cooperativas de plataformas: quais experiências temos no Brasil” começou.

Escuta atenta durante a apresentação dos participantes (Foto: Paola De Bettio)


Os primeiros a se apresentarem foram os representantes da Pedal Express, Ethur e Carol, que contaram um pouco sobre o serviço local de entregas em bicicletas e sobre suas trajetórias. Durante sua fala, também relataram as dificuldades advindas da competição da entrega por grandes empresas que operam através de aplicativos, problemas da legislação, sociais e econômicos, entre outras questões. 


Quem tomou a palavra em seguida foi Natxo, da fundação Mundukide. Projetos colaborativos solidários e o desenvolvimento de cooperativas em países em desenvolvimento, por meio de assistência técnica, capacitação e financiamento são o norte da organização. Natxo falou sobre questões como o modelo de globalização, que gera desigualdade e abuso, e sobre como o movimento cooperativo gera transformação, através do compromisso com a comunidade.

Carol e Ethur, da Pedal Express, na primeira foto, e Rafael G. e Natxo na imagem seguinte (Fotos: Paola De Bettio)


Ele explicou que os princípios da ONG são o desenvolvimento socioeconômico das regiões onde está espalhada, além do fortalecimento da organização socioeconômica. Brasil, Etiópia, Equador, País Basco, Colômbia e Moçambique são os países onde a organização está presente atualmente, trabalhando com suporte técnico, desenvolvimento agrícola e treinamento de pessoas.

Por fim, Vinícius Mesquita e Abdul Nasser, do Sindicato e Organização das Cooperativas Brasileiras do Rio de Janeiro (OCB-RJ), comentaram sobre o contexto de cooperativas no RJ, projetos e iniciativas na área e ainda os desafios para cooperativas a nível nacional. A grade da programação continuou com uma rodada de perguntas, coffee break e a distribuição do livro “Cooperativismo de Plataforma” (Trebor Scholz, 2016, Editora Elefante), feita por Daniel Santini, jornalista vinculado à Fundação Rosa Luxemburgo. A Fundação ajudou na organização do evento. 

Quarta-feira (22): Fairwork e políticas públicas



A abertura do segundo dia de evento teve como foco o workshop do projeto Fairwork sobe trabalho decente. Desenvolvido pela Universidade de Oxford (Reino Unido), o estudo objetiva reivindicar condições mais justas para os trabalhadores de aplicativos e já foi submetido à realidade de pelo menos dez nações. O professor Rafael Grohmann coordenou a versão brasileira do Fairwork, lançada este ano. No Seminário, ele fez uma exposição sobre o funcionamento da iniciativa, acompanhado da pesquisadora Julice Salvagni, docente do Departamento de Ciências Administrativas da UFRGS. A partir de cinco critérios básicos, o Fairwork propõe uma pontuação que é referente às condições de trabalho oferecidas pelas plataformas aos colaboradores, além de mapear a situação nos diferentes países em que a pesquisa está presente.

Rafael Grohmann e Julice Salvagni deram detalhes sobre o projeto Fairwork (Foto: Gabriel M. Ferri)


Dando continuidade às atividades, a tarde de quarta-feira foi contemplada pela realização de três palestras, no âmbito do cooperativismo. A primeira exposição foi de Camila Capacle, doutora em Ciências Sociais pela Unicamp e coordenadora executiva de Trabalho e Economia Criativa e Solidária da Prefeitura Municipal de Araraquara. Durante sua fala, ela falou sobre o programa Coopera Araraquara, desenvolvido pelo município em 2020, no intuito de fomentar o cooperativismo na cidade e diminuir o desemprego. Discorreu ainda sobre algumas cooperativas e aplicativos que contam com o apoio do serviço público na região. 


Em seguida, tomaram a palavra Tadeu Cunha e Renan Kalil, funcionários do Ministério Público do Trabalho, que ofereceram uma visão governamental e retrospectiva sobre o modelo de gerenciamento de mão de obra cooperativa no Brasil, mais conhecida com a chegada da alemã Uber no país. “Quando começaram a receber denúncias, notícias de fato, foi criado um grupo de estudos com objetivo compreender melhor como funcionam essas empresas e como funcionaria este modelo de gestão”, explicou Tadeu.


A última palestra da rodada foi de Igor Salles Barbosa, motorista de aplicativo, que relatou as dificuldades enfrentadas pela classe e falou sobre o movimento Trabalhadores Sem Direito. Igor comentou que, mesmo que as pessoas saibam que estão ganhando mais do que em um trabalho com CLT, ainda há muita insatisfação com os aplicativos e com a falta de parceria e apoio. A fala de Igor foi seguida pela apresentação dos projetos de dois dos pesquisadores presentes: Gabriel M. Ferri, estudante de jornalismo na Unisinos, bolsista de Iniciação Científica no DigiLabour e estagiário no Mescla; Kim Richardson, designer visual que alia a temática do cooperativismo à sua área de atuação desde a realização do TCC que propunha uma ferramenta facilitadora para cicloentregadores.

Quinta-feira (23): Os caminhos possíveis


A programação previa uma visita guiada a cooperativas de trabalho em Porto Alegre e nem a chuva foi capaz de afetar a realização do evento, que reuniu mais de 20 pessoas. Como ponto de partida, os visitantes puderam conhecer as instalações e o funcionamento do Pedal Express – um serviço de entregas em bicicleta localizado no Centro Histórico que atende essa e algumas outras regiões da cidade. Lá, integrantes da equipe e visitantes falaram sobre suas experiências e debateram os principais desafios enfrentados em trabalhos geridos neste formato.

Interior do QG da Pedal Express, no Centro Histórico de Porto Alegre (Foto: Marília Port)


Entre os tópicos da conversa, figuraram a dinâmica entre os ciclistas que trabalham com entregas, a impossibilidade da competição frente às gigantes do ramo e o trabalho humanizado, além das diferenças de organização e autogestão entre cooperativas de pequeno e grande porte. O público estava formado por pesquisadores, estudantes e membros de outras cooperativas com vivências parecidas, a maioria já integrada à programação dos dias anteriores. Entre os presentes, alunos e ex-alunos da Uni, como Camila Luconi, mestre pelo PPG em Gestão e Negócios e egressa do curso de Gestão para Inovação e Liderança (GIL).  


Ao longo do percurso, houve paradas estratégicas em pontos específicos representativos da história da sociedade porto-alegrense. O Largo Zumbi dos Palmares, no bairro Cidade Baixa, foi um dos espaços observados na caminhada. O nome é uma homenagem à marca da história do povo negro na cidade de Porto Alegre. No século XIX, o local era conhecido como Emboscada, devido às armadilhas feitas por escravizados que fugiam e lá se escondiam. Hoje, o espaço recebe feiras livres e outras atividades sociais. A caminhada também incluiu outros pontos históricos da cidade, como a Cinemateca Capitólio, espaço cultural que preserva a memória do cinema gaúcho, e a Praça Garibaldi, onde está situada a estátua que homenageia Giuseppe Garibaldi, erguida em 1913.


Por fim, o grupo visitou a Oficina Pedala Porto, organização comunitária sem fins lucrativos, que visa incentivar e promover a autonomia dos ciclistas, por meio da orientação e conserto de bikes. A ideia é fornecer conhecimento sobre os equipamentos para pessoas que não possuem condições financeiras. A oficina sobrevive através de doações, especialmente de outras oficinas parceiras, que são indiretamente beneficiadas pelo sucesso da iniciativa, já que muitos aprendizes da Pedala Porto se tornam aptos a atuarem como mecânicos de bicicleta. Além disso, o espaço tem forte significação política, porque recebe encontros de grupos como a Resistência Popular de Porto Alegre, organização político-social que promove diversas atividades. Em sua totalidade, a proposta da Pedala Porto é contribuir com o cicloativismo, através da conexão com a cidade.

O grupo em frente à Pedala Porto (Foto: Marília Port)


A tarde do último dia foi aberta pela fala de Daniel Santini, jornalista vinculado à Fundação Rosa Luxemburgo, sobre o livro de Leonardo Foletto – “A cultura é livre: Uma história da resistência antipropriedade”. Daniel expressou um pouco das ideias do autor para o público; ele explica que o livro é resultado do trabalho de Leonardo em pensar a cultura a partir da perspectiva do livre compartilhamento. Leonardo tem um site, o Baixa Cultura, em que segue esta linha de pensamento, com foco em tratar a informação como um direito, não como mercadoria, e o livro propõe este debate. A obra tem prefácio de Gilberto Gil e foi editada pela editora independente Autonomia Literária, em parceria com a Fundação Rosa Luxemburgo. Ela está disponível para download no site do Baixa Cultura e para compra junto à editora


Na mesma tarde, também falaram Renata Guedes e Victor Barcellos, pesquisadores do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS Rio). Eles apresentaram a organização, criada por três pesquisadores da área do Direito (Ronaldo Lemos, Carlos Afonso Souza e Sergio Branco), que busca expandir horizontes, bem como mostrar as possibilidades e benefícios da tecnologia no Sul Global. O Instituto divide-se em quatro grandes áreas: Direito e Tecnologia e Govtech; Educação; Mídias; e Democracia e Tecnologia.

“Acreditamos que não adianta produzir conhecimento se esse conhecimento não circular”, afirma Victor, e explica que o grande foco do ITS Rio são os cursos online e ao vivo. Na área de mídias, por exemplo, o ITS Rio desenvolveu o curso de saúde mental para jornalistas, pensando no contexto da pandemia, em que os profissionais tiveram que noticiar assuntos pesados e alguns sofreram ataques pessoais.

Renata Guedes e Victor Barcellos durante a exposição (Foto: Joana Troian)


Renata e Victor ainda discorreram sobre a Conferência do Consórcio de Cooperativismo de Plataforma, evento internacional que acontecerá no Museu do Amanhã (RJ), entre os dias 4 e 6 novembro. Este será o maior encontro mundial da área. Nas edições anteriores, já ocorreu em Berlim, Hong Kong, Nova York e, agora, chega ao Brasil, em sua primeira edição sul-americana. Estarão reunidos autores-chave no assunto, além de acadêmicos, formuladores de políticas públicas, entusiastas da tecnologia, integrantes de cooperativas e o público geral interessado em produzir cada vez mais conhecimento e troca de experiências.

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