Dentre as milhões de vítimas que a COVID-19 já fez, está um dos pensadores mais importantes para o campo da Comunicação. Jesús Martín-Barbero, 83 anos, era um filósofo, teórico da comunicação, da educação, e pesquisador. Apesar de ter nascido na Espanha, adotou o continente latino-americano e se radicou na Colômbia.
Sabendo da importância desta figura, principalmente para a Comunicação e a Escola da Indústria Criativa, nós, do Mescla, resolvemos falar com um dos professores que integram a Graduação e o Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Unisinos, atuando assim, do “primeiro ao último degrau” na formação acadêmica de comunicadores. Alberto Efendy Maldonado Gómez de la Torre, conhecido pelos alunos como Efendy, que há 30 anos trocou o Equador pelo Brasil, teve contato com Martín-Barbero ao longo de suas pesquisas de doutorado na Universidade de São Paulo (USP). Efendy conversou com a gente por vídeo-chamada no último dia 18, e enfatizou que Martín-Barbero nos mostrou também a necessidade de problematizar o mundo que vivemos e o impacto positivo de se manter irreverente. Efendy explica que Barbero se consolida como um dos maiores filósofos modernos, e apesar de ter transitado em diversas áreas, como a Semiótica, os Estudos Culturais Britânicos, ele foi o desbravador dos estudos das Mediações, no qual deixa uma grande marca. Trazemos aqui um resumo desta conversa.
Essencial, denso e plural
“Martín-Babero condensa nele aquilo que conhecemos, e o que a Unisinos, por exemplo, coloca como eixo central nos seus afazeres acadêmicos e científicos, que é a transdisciplinaridade. Ele foi, e continua sendo, na sua obra, um pensador transdisciplinar. Um pensador que vai viver do mais avançado comportamento crítico do pensamento europeu, e que vai ter uma experiência de vida muito rica nessas confrontações”, explica Efendy, já mostrando que o trabalho de Barbero se torna referência inclusive para produzir novas formas de aprender.
O professor também comenta sobre o choque entre a cultura europeia fervilhante dos anos 1960, com toda irreverência e o “caráter subversivo” dos jovens que queriam um novo mundo, até a chegada de Barbero à Colômbia, onde ele percebe uma cultura popular em constante florescimento, que mostram a riqueza que o filósofo traz consigo, justificando a importância da transdisciplinaridade no pensar.
Formação europeia e o choque existencial
Barbero teve uma formação rigorosa em Filosofia, através daquilo que se conhece como “Semiologias Estruturalistas” europeias, passando pelo Existencialismo, pela Fenomenologia, pelo Pensamento Crítico de Frankfurt e dos britânicos. A ditadura franquista não permitia um livre pensar, e a vida das universidades estava abalada, por isso, Barbero parte para estudar na França. Apesar de ter contato com Espanha, França, Bélgica, Alemanha e Reino Unido, é ao chegar ao nosso continente que ele leva um choque existencial. “Primeiro na Colômbia, e depois em outros lugares, ele via que as culturas populares floresciam, e ele sentia que na Europa isso estava em uma posição de diminuição, de enfraquecimento e marginalização pela força do capital, pela força sistêmica, pela barbárie das guerras”, explica Efendy, que completa, “ele fica atravessado por todos esses conjuntos de culturas, com suas formas de vida, suas cosmovisões, suas propostas. Ele vai repensar completamente aquela formação europeia, aquela formação que chegava como o conhecimento “mais avançado” da humanidade.”
O professor conta ainda que Barbero esteve aqui no Brasil por um tempo antes de concluir o doutorado em Lovaina, na Bélgica, local onde acontece um de seus primeiros desafios acadêmicos, que foi convencer os “eruditos filósofos ”, professores da instituição, que aceitassem o pensamento de Paulo Freire como um pensamento filosófico, além de não aceitar que a tese fosse defendida em francês ou inglês, e sim, em espanhol. Ele conseguiu, também, mediante uma luta política, que era um posicionamento, fazer com que o espanhol fosse visto como uma língua que merece ser reconhecida na produção de conhecimento.
“Ele era irreverente, era travesso, era indisciplinado, tinha toda essa força, que vinha da sua família anarquista, no seu comportamento. Ele questionava, problematizava, lia diferentes vertentes e era muito corajoso, muito forte, apesar de ser de estatura física pequena”, conclui.
Transformando o meio acadêmico
Na época, o “midiacentrismo”, ou a “mass communication research”, foi o primeiro referente que conseguiu certa “legitimidade” no contexto acadêmico internacional, no qual Barbero começa a trabalhar e vai conseguir uma desconstrução desses modelos de pensamento, de pesquisa, de trabalho e de profissionalização. Além da Filosofia e da Comunicação, o pesquisador mudou e impactou a área da Educação, tendo, já nos anos 1960, conhecido o pensamento de Paulo Freire e batido o pé para afirmar a importância de autonomia e pensamento crítico no processo educacional. Então, ele questiona os afazeres de ensino e pesquisa nas universidades.
Ele traz para o campo da comunicação toda a riquíssima experiência da pesquisa crítica e questionadora, que ao mesmo tempo precisa ser “heurística, hermenêutica”, e seja profundamente vinculada à vida das sociedades e das pessoas. Dessa forma, ele foi convidado para comandar uma transformação no curso de comunicação da Universidad del Valle, em Cali, na Colômbia. Proposta esta que influenciou a mudança em outros lugares da América Latina.
“Jesús Martín consegue trabalhar no campo acadêmico de um modo renovador, de um modo atualizador. É um crítico central contra o instrumentalismo, o utilitarismo e o funcionalismo presente na nossa área. E ele vai promover tudo aquilo que uma formação artística e uma formação teórica forte tem.”
Formulando teorias
É no campo das teorias que Jesús Martín-Barbero vai abrir uma nova vertente, que são as Mediações Socioculturais. Esta vertente se tornou muito importante para outros estudos da área, como por exemplo, o estudo de recepção.
Ele vai inserir nas problemáticas da comunicação as matrizes culturais, que são estruturas, formações, modelos culturais, presentes de longa data e também contemporâneos. O professor Efendy explica que nós temos matrizes culturais como o patriarcalismo, o racismo, quem têm séculos de história, e matrizes culturais contemporâneas, como tudo aquilo que é na nossa América. A luta contra o imperialismo, por exemplo, é uma matriz cultural muito presente nas juventudes. Além da luta indígena, pelo reconhecimento de sua participação relevante nas sociedades e das matrizes culturais, como matrizes populares, de vida comunitária e existência comunitária.
Esse é um aspecto da “microssociologia”, vinda através do sociólogo alemão Georg Simmel. Essas “matrizes” explicam como funcionam algumas mediações. Além das mediações culturais e sociais, temos mediações familiares, religiosas, regionais, étnicas e tecnológicas. Ainda assim, existem “frações” dentro destas mediações.
“Se nós pensarmos atualmente as mensagens de ódio, as mensagens de destruição, as mensagens racistas, misóginas, elas são produzidas numa mesma estrutura discursiva, por figuras centrais, que são construídas como referentes políticos simbólicos. Só que essa mesma mensagem, se tu está numa comunidade pentecostal conservadora, gera determinados sentidos. Então, existe uma mediação religiosa muito forte”, exemplifica o professor Efendy.
“Isso não significa que em uma família todos vão pensar do mesmo jeito, significa que essa mediação está atravessando. Por exemplo, para uma jovem que tem um pensamento mais livre, ter uma família conservadora gera uma mediação forte de choque, de contraste, de desestabilização, às vezes até de angustia.”, conclui.
As mediações são “lugares simbólicos”, ou seja, configuram uma estrutura semiótica, no qual as pessoas se sentem pertencentes. São esses signos estudados, que formam mediações, que explicam a razão de Martín-Barbero se aproximar da comunicação, ou seja, pela formação filosófica em Semiótica.
Para ir além
Martín-Barbero se consagra e se “espalha” por diversos lugares. Com as suas propostas educativas, ele vai se tornar um contribuidor do que Mário Kaplún desenvolve como “Educomunicação”. Ele é um dos organizadores da Associação Latino-americana de Investigadores de Comunicação (ALAIC), além da Federação Latino-Americana das Faculdades de Comunicação (FACS). No âmbito das publicações científicas, ele vai contribuir para a revista “Signo e Pensamento” e “Diálogos da Comunicação”, além de colaborar para a revista “Chasqui”. É através da participação no Centro Internacional de Estudos Superiores de Comunicação para América Latina (CIESPAL), que ele vai publicar seu primeiro livro, “Comunicação Massiva – Discurso e Poder”.
Viagem por interpretações históricas
“Ele é, portanto, um crítico semiológico, um crítico da produção de sentido, da produção de símbolos das nossas sociedades. Ele simultaneamente vai valorizar, por exemplo, as produções das grandes mídias, como a própria telenovela. Ele pesquisou a telenovela, (e pesquisamos, no contexto latino- americano, nós temos grupos articulados de investigação sobre telenovela) porque uma compreensão muito interessante vai conceber que esses gêneros populares nas mídias, como gêneros que são heterogêneos, nos permitem a entrada de discursos que disputam a hegemonia. Então, ele, em termos políticos, vai seguir a linha do Antônio Gramsci, da problemática da hegemonia. Ele vai propor que essa hegemonia pode ser disputada, pode ser trabalhada no combate simbólico, e que por exemplo, podemos ter grandes referentes, como Dias Gomes, aqui Brasil, um dos maiores teledramaturgos do mundo, que colocaram narrativas, enredos e estratégias de comunicação muito interessantes, problematizadoras, aproximadoras da realidade, e enfraquecedoras do poder autoritário.”
Efendy concluiu a conversa com um convite, a todos, demonstrando grande afeto a Martín-Barbero.
“Leiam Martín-Barbero. Peguem aí na internet, também. Vão ter materiais. Ele é um companheiro legal para nosso trabalho profissional, para nós comunicadoras e comunicadores. Apreciem a história, porque o Martín-Barbero nos trouxe algo que alguns autores relevantes da nossa América insistem, que é uma epistemologia histórica, ou seja, se queremos compreender os problemas e os sentido da vida, como está colocando esta conjuntura catastrófica, precisamos de um olhar histórico, precisamos de interpretações históricas. Então, o Jesús Martín nos permite uma viagem histórica qualificada. Para aprender sobre nosso campo, sobre nossa realidade, sobre os sentidos da vida, sobre os sentidos de nosso trabalho. É interessante ter carinho e dedicação para dialogar com ele.”