Especial

#antirracista #comunicação #gênero #indústria criativa #jornalismo #levantamento #mescla #raça
As vozes que não ouvimos: Mescla realiza Levantamento de Raça e Gênero
"Não basta a teoria, é a hora do Portal se comprometer a mudar a prática da sua redação com base nos dados levantados"
Avatar photo


Por: Bruna Lago e Lisandra Steffen


Este Especial é, acima de tudo, uma peça de reflexão e (auto)crítica sobre a responsabilidade de cada um para garantir mais diversidade de raça, gênero e classe em todos os espaços. E o espaço em questão é o próprio Mescla, que agenda e repercute os caminhos da Indústria Criativa. Pensando nisso, trocamos a terceira pessoa do singular, forma mais comum da narrativa jornalística, pela primeira do plural. O nós representa não apenas as repórteres que assinam este texto, mas também a equipe de demais estagiários, professores e funcionários que  fazem o Portal Mescla.


As manifestações antirracistas que varreram o mundo no ano passado, nos provocaram ainda mais a pensar sobre esta responsabilidade da mídia. A inquietação revelou que precisávamos melhorar a formação nos temas de branquitude e negritude, e, neste sentido, realizamos uma oficina com o Núcleo de Estudos Afrobrasileiros e Indígenas (Neabi). O encontro, que foi aberto para a comunidade Unisinos, nos deu elementos para  pensar a partir do nosso lugar, uma redação branca, dentro de uma universidade privada majoritariamente branca. Qual seria o nosso papel nesta luta antirracista? 


A oficina foi o início da caminhada para viramos a chave, e incorporarmos o enfrentamento à discriminação racial para além das datas comemorativas ou eventos  ligados a protestos contra a violência racial. O que poderia ser feito de concreto pela redação para mudar? Paramos, então, para analisar todo o nosso processo de produção de conteúdo. Identificamos quem estávamos escolhendo como fontes para se pronunciarem sobre os mais diversos assuntos do Mescla e quem eram os profissionais que estávamos convocando a ocuparem a cena do Portal. 


Após diversas discussões girando em torno desse tema, e inspirados pelo Grupo Matinal Jornalismo, um projeto gaúcho e independente de comunicação digital, achamos que seria necessário produzir um Levantamento de Raça e Gênero das matérias do Mescla. Marcela Donini, editora-chefe do Matinal, conversou com o Mescla no ano passado sobre o levantamento realizado pelo grupo que rendeu a eles a percepção de que precisavam  aumentar a diversificação das fontes. A jornalista entende que estar ligada às questões raciais é fundamental, mas não basta. Marcela também acredita que nem o próprio editorial, escrito em julho de 2020, fará o Matinal ser exemplo de diversidade. “Procurei, ativamente, jornalistas negros pra me colocar a disposição”, explica. Segundo o levantamento, 87% dos autores e entrevistados da Parêntese – revista semanal do Grupo Matinal – são brancos.


Os resultados encontrados pelo Mescla


O levantamento, no Portal, nos motivou a olhar com lupa para nossas produções. Tendo como foco as três editorias que concentram a maioria dos assuntos tratados no Mescla – Por Dentro, Deu Certo e Especial -, fizemos uma busca por todas as fontes consultadas nas matérias publicadas a partir de maio de 2019 (quando o Mescla foi reestruturado) até dezembro de 2020. 


Classificamos os entrevistados por gênero (homens e mulheres) e raça (brancos, negros ou não identificados). Esta categoria, não identificados, foi a forma que encontramos para resolver a falta desta informação, já que nossa categorização foi realizada depois das matérias estarem no ar, ou seja, nunca perguntamos para os entrevistados como eles se autodeclaravam. Ela passou a ser usada nos casos em que, pela foto dos entrevistados,  ou ainda pelo conteúdo da matéria, não era possível identificar cor ou raça. Estávamos cientes, desde o início, que essa forma de realizar o levantamento possuía falhas, mas acabou sendo a maneira mais eficiente de realizá-lo.


O levantamento mostrou 230 matérias publicadas neste período. Entre fontes inéditas e recorrentes do Mescla, 655 pessoas foram ouvidas em dois anos.

Em dois anos, o Mescla entrevistou mais de 600 pessoas


Nestes dois anos, a maioria das fontes ouvidas pelo Portal é do gênero feminino. Foram 346 mulheres, mas destas, apenas 19 são negras. Dos 304 homens, só 17 não brancos foram ouvidos. Podemos afirmar que 90% das fontes acessadas pelo Portal em 2019 são de pessoas brancas. Já em 2020,  mesmo com o esforço da redação em trazer mais assuntos sobre a desigualdade racial para o Mescla, este percentual aumentou. Foram 95% de fontes brancas.

O número de fontes brancas aumentou em 2020


Quem são as principais fontes do Mescla? 


Como o Mescla traz muitos assuntos ligados à prática da sala de aula, produtos realizados e eventos, os professores da Escola da Indústria Criativa são as principais fontes do Portal. Nesse contexto, nós também não lembramos de ter aulas com algum professor ou professora negros durante o curso, o que explica, ao menos em parte,  os números apresentados. Mas não nos isenta da responsabilidade de buscar uma maior diversidade.


Se o levantamento nos mostrou o perfil racial e de gênero de fontes que estamos acessando, uma maioria esmagadora branca, o que temos agora é um alerta  para a realização das futuras matérias: Como garantir mais diversidade nesta busca? 


Desigualdade: um oceano entre nós


Para sabermos como agir, é necessário entender os sentidos do racismo estrutural, que permeia todos os setores da sociedade, e é um obstáculo ao acesso ao estudo. A Agência Brasil publicou uma matéria onde aponta o crescimento de jovens universitários negros no país, 400% (entre 2010 e 2019). Apesar do aumento ser importante, o número está longe de ser o ideal. Os negros e pardos são  38% do total dos  estudantes, mas a população negra brasileira é superior à branca, representa 56,10% do total. Isso se reflete no número de profissionais graduados que chegam ao mercado de trabalho.


O IBGE, na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua de 2018, mostra que alunos negros ainda são minoria tanto em universidades públicas, quanto em privadas. 53,4% dos alunos que estudam em instituições privadas são brancos. O Mescla é um produto realizado pela Agexcom, uma agência experimental de comunicação majoritariamente branca. Por estarmos inseridos dentro da Unisinos, somos o reflexo dessa pesquisa. 


Se menos de 40% dos jovens negros chegam até a faculdade, muitos menos chegam aos papéis de professores ou especialistas. Por isso, quando, aqui no Mescla, procuramos esses profissionais que se tornam fontes confiáveis para nossas matérias, não chegamos imediatamente aos profissionais negros. Se não nos preocuparmos em encontrar essas fontes não brancas, elas não aparecem diretamente onde possamos vê-las, já que todo caminho até esse local de destaque é dificultado pelo racismo. Neste sentido, as listas de fontes não brancas, que circulam nas redações, como o Guia de Fontes para um Jornalismo antirracista, ajudam a dar projeção para estes profissionais invisibilizados pelo racismo. 


Se o racismo é estrutural, como nos ensina  Silvio Almeida, qual o papel dos brancos para reduzir a violência racial, seja ela simbólica ou física? Entendemos que trata-se de um processo de conscientização gradual, e que passa por identificarmos os privilégios e a hegemonia da branquitude em todas as esferas da nossa sociedade. Foi o que tentamos fazer com este Levantamento de Raça e Gênero, que mostrou uma diferença exorbitante entre fontes brancas e negras acessadas. Não nos orgulhamos destes números, mas assumimos o compromisso de lutar para aumentar a diversidade e a representatividade neste espaço. 


E, para isso, estamos revendo uma série de procedimentos que formam a nossa rotina produtiva, passando pela escolha dos temas, das abordagens, enquadramentos, e, claro, das fontes. Acreditamos ainda que os nossos leitores podem nos ajudar muito nessa mudança, e vamos trabalhar para aumentar este diálogo.  


O levantamento quantificou a realidade para que possamos enfrentá-la melhor. Agora que sabemos os “comos” e “os porquês” deste processo, precisamos mudar. Sem transformações práticas, a teoria não vale muito mais do que um sonho distante. Não é tarefa fácil, mas é urgente. 

Mais recentes