A tecnologia e a digitalização das coisas são fatores que já estão totalmente presentes em nossa vida. A popularização das plataformas de redes sociais é parte das transformações que vieram no cerne da chamada quarta revolução que cria forças intensas sobre a sociedade contemporânea. Atualmente, no Brasil, há 424 milhões de dispositivos digitais em uso, como tablets e smartphones, segundo dados da 31ª Pesquisa Anual do FGVcia, realizada pela Fundação Getulio Vargas.
Causa ou efeito da indústria digital, está a dependência crescente das pessoas com as redes sociais. O documentário O Dilema das Redes, disponibilizado na Netflix, traz um alerta feito por especialistas em tecnologia e profissionais da área sobre os riscos do uso das redes em nossa sociedade e para nossa democracia.
A produção aborda um problema que está apenas na ponta do iceberg, porém, é necessário ir da superfície ao fundo para entender melhor a situação em que estamos. Com uma narrativa didática, o documentário utiliza depoimentos de ex-funcionários, até mesmo de alto escalão, das big techs (Facebook, Google e Twitter) utilizando uma narrativa como pano de fundo, com o objetivo de mostrar como e por que está cada vez mais difícil parar de usar smartphones e redes sociais.
“A verdadeira pergunta, como diria o soldado do passo errado, é: por que tanta gente usa?”
Mesmo com um cenário propício ao aumento do uso, algumas pessoas preferem abrir mão da conexão instantânea, como é o caso do professor da Escola da Indústria Criativa da Unisinos Gilberto Pires de Assis Brasil. O ‘Giba’, como é profissionalmente conhecido, também é carinhosamente reconhecido pelo seu posicionamento crítico às redes sociais, e ao monopólio das grandes empresas de comunicação, como o Google, por exemplo.
Foi por e-mail que o professor respondeu às questões propostas pela reportagem. De formação jornalística, especializado em montagem e com um vasto currículo que inclui trabalhos como Ilha das Flores (1989) e O Homem que Copiava (2003), Giba fez das respostas uma importante reflexão sobre como as necessidades se criam e como não pensamos sobre elas.
Com um estilo transparente e direto, o professor começa sua resposta como uma breve apresentação: “Antes de tudo, se é para me apresentar como um personagem estranho, já adianto que eu também não sei cozinhar nem dirigir automóvel. Não acredito em Deus, no livre mercado, nem em direito autoral. E não respondo pesquisa: acho que ninguém tem o direito de pegar a minha opinião e transformá-la na média da opinião dos outros, e vice-versa. E o mais estranho de tudo: não sei descascar laranja.”, revela.
Antes de contar sobre sua experiência com as plataformas, Giba trouxe uma interessante reflexão sobre duas personagens do mundo da tecnologia e informação: Julian Assange e Mark Zuckerberg. Como elucida o professor, um rouba informações de governos e grandes empresas e distribui de graça para toda a população, enquanto o outro rouba informações de toda a população e vende por muito dinheiro para governos e grandes empresas. A questão é, ao mesmo tempo que um deles está preso e exilado, o outro está entre as pessoas mais ricas do planeta. E o fato de não prestarmos atenção em quem é qual pode ser preocupante.
Por isso, logo na minha pergunta sobre o por que ele não utiliza redes sociais, o professor questiona o espanto que, normalmente, causa nas pessoas por não ter redes sociais: “A verdadeira pergunta, como diria o soldado do passo errado, é: por que tanta gente usa?”. Ele entrou no Facebook em março de 2010, principalmente, pelo fato da plataforma ser uma grande e divertida perda de tempo, como descreviam seus amigos. E Giba sempre gostou de perder seu tempo com algumas coisas que ele diz serem inúteis, como assistir futebol e fazer palíndromos, conforme ele mesmo revela.
Aos poucos o professor do curso de Realização Audiovisual foi descobrindo que por mais que gostasse muito dos seus amigos e parentes, ele não fazia a menor questão de saber o que faziam a cada 15 minutos: “Eu já tinha ultrapassado a marca de mil ‘amigos’ e senti que aquilo tudo não me deixava mais próximo de nenhum deles”, explica. Ele revela, ainda, que muitas pessoas, das quais passou a vida inteira gostando, estavam se tornando, um pouco, insuportáveis. E, no fim, ele sabia que o problema não era ele, nem as pessoas. O tempo ‘conectado’ no Facebook durou um ano e, após isso, o professor conta que nunca teve vontade alguma de voltar para lá.
Com o Whatsapp foi a mesma coisa, o professor da Indústria Criativa até tentou se ambientar a plataforma, pois era uma maneira fácil e barata de se comunicar com a sua filha, que estava morando no Rio de Janeiro. Porém, com o tempo, aquele sinalzinho que soava toda hora por coisa nenhuma e mais ainda a neurose de quando o sinalzinho ficava muito tempo sem soar, o aplicativo começou a ser um problema.
E, talvez, por uma certa sorte, um assalto o ‘ajudou’ a se livrar da ferramenta, como Giba mesmo explica: “Tive que comprar outro celular e, antes de apagar o aplicativo, coloquei no meu “status”, bem claro: “Eu não uso essa merda!”. Apesar disso, de vez em quando ainda recebo e-mails indignados: “Te mandei um Whats. Por que não respondeste?”, comenta. Aliás, confesso que, como repórter, deveria ter prestado atenção no status do entrevistado quando fiquei esperando por uma resposta.
Pensar sobre e pensar com a internet das coisas
“Estas ações estão produzindo modos de existência e estão articulando importantes processos de subjetivação”, explica a professora do Doutorado em Informática na Educação da UFRGS, Vanessa Maurente. Graduada em psicologia, Vanessa também prefere refletir sobre os sentidos produzidos pelo uso da tecnologia. Ela comenta que é muito desafiador optar por não fazer o uso de certas tecnologias, já que vivemos em um mundo que opera sob esses processos.
Vanessa entende que devemos questionar que padrões atencionais as tecnologias ajudam a acionar: “Que tipos de relacionamentos se normatizam? Que modos de conhecer se instauram?”, questiona.
Pensando nestas outras possibilidades de viver a tecnologia, ela, juntamente com os professores Cleci Maraschin e o Luis Artur Costa, coordena um projeto de pesquisa, intitulado Oficinando em Rede: Figurações Corporificadas. O projeto consiste em um jogo digital direcionado a crianças com idades entre 7 a 12 anos.
O jogo envolve os participantes em uma narrativa imersiva, através da descrição de situações contextuais vividas por crianças fictícias, que incluam os marcadores sociais da diferença. Os participantes devem discutir em plataformas de aprendizagem online ou aplicativos de bate papo, quando eles consideram que a criança personagem da situação experiencia sentimentos mais sofridos, como, por exemplo, a raiva ou o medo: “O objetivo é trabalhar temáticas relativas ao racismo, gordofobia, desigualdade de gênero, classe e inclusão”, explica Vanessa. Um jeito de operar produzindo novos sentidos aproveitando as lógicas comunicacionais das próprias crianças.