Este repórter que vos escreve lembra de conhecer a Mafalda ainda no ensino fundamental, enquanto folheava alguns livros de Português e História. Pouquíssimas crianças se interessam por Jornalismo, Política ou até mesmo para os problemas do mundo. Mas parecia que aquela menina falante e um tanto quanto “xereta” falava sobre coisas importantes e complexas de um jeito diferente.
Assim como Quino fez com a Mafalda, diversos outros artistas trabalham assuntos contemporâneos – ou não – através da charge, cartum ou quadrinho. Eles são meio jornalistas opinativos, meio artistas, enfim, personagens que me enchem de curiosidade: como é ter uma ideia por dia e passar para o traço? Quais são os formatos possíveis? Pode-se fazer uma reportagem com quadrinhos? Com tantas perguntas em mente, bolei esta pauta e conversei com quatro artistas – de diferentes gerações, lugares do Brasil e estilos – sobre a profissão e as referências deles. Para todos, perguntei sobre a importância do Quino em seus trabalhos. O cartunista argentino morreu aos 88 anos, em setembro desde ano.
Ah, antes, uma curiosidade. É difícil saber exatamente qual a origem, porém, há registros que mostram a presença da charge e do cartum, no Brasil, já no século 19. Apesar das sutis diferenças entre os dois, eles foram usados, ao longo dos anos, como uma forma de criticar ou abordar alguns comportamentos sociais e políticos, essencialmente em períodos ditatoriais e totalitários.
O traço gaúcho
Gilmar Fraga, 52 anos, trabalha como “profissional de traço” há mais de 25 anos. Natural de Viamão, cidade da Região Metropolitana de Porto Alegre, ele tem seu trabalho publicado nas plataformas de GZH, atuando em um campo opinativo, todos os dias, desde abril deste ano. Tudo começou de uma forma bem inusitada após um acidente, ainda na infância. O artista sofreu um ferimento no olho quando era criança e, como forma de tratamento, era estimulado a fazer desenhos de personagens da época, como a Minnie e o Mickey, através de um projetor gráfico, utilizando apenas o olho ferido. Ali, teve o primeiro contato com todo o universo dos personagens e do desenho. Ainda na escola, as revistas e os quadrinhos também fizeram parte da formação de Fraga como chargista e cartunista.
Fraga começou no jornal Zero Hora nos anos 90, época em que os grandes “medalhões” do jornalismo local trabalhavam no veículo: “Era uma época diferente e um pouco difícil para quem estava começando. O pessoal passava por ti e nem cumprimentava, era uma coisa meio que ‘escola de filme americano’”, relembra rindo.
Questionei o entrevistado sobre a importância e a influência do Quino no seu trabalho. Fraga resumiu tudo em apenas duas palavras: influência espiritual. Além do argentino, outra grande referência no trabalho de Gilmar foi o ilustrador e cartunista brasileiro J.Carlos.
Mas, afinal, como é ter uma boa ideia todo dia? Fraga explica que esse foi um dos maiores desafios que enfrentou. O chargista, que antes produzia uma charge por semana, passou a produzir uma charge por dia após a saída do colega Iotti: “Fazer charge diária é escolher abrir mão de outros projetos e fazer escolhas diárias entre os principais acontecimentos do dia”, explica. O artista ainda fala que é importante saber organizar os elementos dentro das charges e dos quadrinhos.
O trabalho de Fraga tem como objetivo retratar e fazer críticas, sejam sociais ou políticas. Uma delas foi a charge feita sobre o “caso Mari Ferrer“. Ele comenta que houve muita repercussão, com comentários positivos e negativos. Um deles foi de um juiz. Ele disse que a charge estava “desconstruindo símbolos da justiça”. Ah, sim! A interpretação do público é um dos fatos que acompanham o artista. Fraga reforça que a charge é uma constante crítica aos costumes do nosso tempo.
Mas, afinal, dá para contar a história de alguém apenas com quadrinhos? Para o Pablito, 32 anos, sim! Assim como o maltês Joe Sacco, referência mundial no gênero, Pablito conta diferentes histórias, de diferentes pessoas, através dos quadrinhos e do desenho. Tudo começou em 2016, quando começou a trabalhar no jornal de sua cidade, Alvorada. Ele iniciou como diagramador e chargista, mas, após alguns meses, passou a fazer, também, quadrinhos.
Com novos modos de narrar histórias, quem ganha é o próprio jornalismo: “Vejo os quadrinhos como um outro tipo de leitura que atrai o leitor através da imagem e texto. Acredito que essa diversidade para o jornalismo é bem rica”, defende Pablito. Além de citar Joe Sacco e sua obra mais famosa, Palestina, ele também faz referência ao artista francês Matthias Picard, com Jeanine, como fonte de inspiração. Pablito entende que o que define se os quadrinhos podem ou não configurar novos gêneros no jornalismo é a própria intenção do autor, pois as opções são infinitas.
Como não podia ser diferente, a influência do artista argentino Quino é direta na vida de Pablito, seja na carreira ou até mesmo na vida pessoal: “A Mafalda me influenciou não somente no meu trabalho como quadrinista, mas, também, na minha forma de encarar a vida, através do olhar dela – que era o olhar do Quino – em relação ao mundo e a política que nos cerca”, resume.
Nas histórias que conta, Pablito, que é formado em Comunicação Digital pela Unisinos, desenvolve um sentimento diferente em cada uma delas. E uma destas histórias marcantes foi a da diarista e mãe solteira de cinco filhos Adriana: “Fui em um culto com ela e também fui em sua casa entrevistá-la. Aprendi bastante e me emocionei diversas vezes enquanto fazia esse quadrinho”, revela.
Apenas Laerte
É impossível falar sobre charge e cartum sem falar sobre a Laerte. Sugiro assistir o documentário Laerte-se, dirigido pela Eliane Brum e disponibilizado na Netflix. Nele, a cartunista nos convida a conhecer melhor o seu mundo e fala sobre o processo de autoaceitação como, também, mulher. Natural da cidade de São Paulo e com 69 anos, sendo 50 dedicados a sua vida profissional, Laerte é referência para chargistas, cartunistas e quadrinistas de diferentes gerações. Criadora de personagens como os Piratas do Tietê e Overman, a artista já publicou em diversas revistas, como O Pasquim e Chiclete com Banana, e em diversos jornais, como Folha de S.Paulo e O Estado de S. Paulo. Laerte também é ilustradora e roteirista. No anos 90, atuou como roteirista em diversos programas na Rede Globo, como TV Pirata e Sai de Baixo.
Sobre a relação da arte com o jornalismo, para Laerte é extremamente importante: “Acho que as charges têm um impacto bem específico na leitura de um jornal, já que não são, necessariamente, material informativo”, explica. Para a artista, as charges também constituem um tipo muito particular de material opinativo.
Já a influência do Quino em seu trabalho é total: “Foi um dos grandes motivadores para que eu decidisse ser desenhista na imprensa”, revela Laerte, que diz sempre ter acompanhado o trabalho do argentino, seja a Mafalda ou os cartuns.
Com um humor refinado e ao mesmo tempo severo, as tiras de Laerte abordam as mais diferentes questões da existência humana. Se para uma pessoa comum já é difícil escolher um trabalho favorito, imagina para alguém que tem quase 50 anos de carreira: “Vejo tudo o que já fiz de um modo meio embolado, como um grande acervo. Acho que evito analisar”, resume Laerte.
“Condenar o cartunista (não) vai resolver o problema”
Com tirinhas ácidas e sem medo algum de falar sobre os assuntos mais polêmicos e controversos do Brasil contemporâneo, Ricardo Coimbra, 42 anos, natural de Recreio, uma cidade pequena do interior de Minas Gerais, se destaca no cenário atual. Ainda na infância, o primeiro contato com a arte foi através dos gibis e desenhos animados. Já na adolescência, como grande partes dos jovens que queriam trabalhar com quadrinhos, Ricardo teve como inspiração a Chiclete com Banana, revista underground dos anos 80.
“A primeira coisa que eu fazia, quando abria os livros didáticos da escola, era ir direto para as tirinhas da Mafalda”, lembra Ricardo. A relação com a personagem era controversa: “Acho ela um pouco chata. Me lembra aquele fenômeno que tinha nas novelas da Globo, da ‘criança adulta’”, brinca o artista.
Ricardo ainda fala sobre a violência contemporânea, principalmente relacionada à arte e à comunicação, como no “caso Charlie Hebdo“. Para ele, ninguém muda o mundo com tirinha. Ela é apenas uma reação a tal realidade: “As pessoas sempre se revoltam com o vetor mais fraco, achando que condenar o cartunista vai resolver o problema”, explica. Como elucida Ricardo, tal comportamento tem relação com a atual economia simbólica, em que as pessoas dão uma dimensão gigantesca para o discurso.
E, às vezes, as tirinhas podem romper fronteiras, como é o caso da tirinha que fez sobre a vida adolescente, em 2010. Ricardo conta que recebeu de amigos uma imagem da internet, em que a tirinha estava traduzida em alfabeto cirílico russo: “Isso é uma coisa fascinante e me faz pensar que existem alguns tipos de conteúdos que são universais”, conta.
Relato do repórter
Conhecida mundialmente pelas capas de suas edições, a revista estadunidense The New Yorker também é famosa por seus cartuns. Eu poderia escrever diversas linhas apontando e indicando os meus favoritos. Por mais que eu quisesse muito, desta vez não rolou uma entrevista com o pessoal da The New Yorker, mas quem sabe em uma próxima vez, afinal, por que não? Enquanto não temos a entrevista, minha dica é para vocês jogarem a hashtag #NewYorkerCartoons nas redes sociais.