A presença negra dentro das artes não é uma discussão inédita. Mesmo assim, ainda há uma longa estrada a ser percorrida para que todas as etnias tenham o mesmo espaço e visibilidade que os brancos já possuem há muito tempo. Dentro da música, iniciativas estão sendo feitas com a intenção de dar protagonismo para artistas negros. É o caso do projeto Tem Preto no Sul, uma iniciativa do coletivo Stay Black, de Pelotas.
O Stay Black se dedica a organizar eventos de rua gratuitos, fazer rodas de conversa e trazer artistas negros de várias partes do Brasil para que seus trabalhos tenham um público cada vez maior. Agora, o coletivo está lançando seu mais novo trabalho, o programa Tem Preto no Sul, graças ao patrocínio conquistado no programa Natura Musical, que anualmente seleciona iniciativas voltadas à música para receberem apoio financeiro.
O intuito do projeto Tem Preto no Sul é ajudar a lançar novos artistas negros na cena musical do Rio Grande do Sul. Para isso, serão selecionados três músicos negros do Estado para receberem oficinas de produção musical, composição e expressão corporal a fim de dar a eles toda a experiência necessária para se lançarem na música. Além disso, cada artista também vai gravar um EP com até três faixas custeado pelo projeto.
Esse é o primeiro projeto do grupo que recebe apoio financeiro via edital. Normalmente, todos os trabalhos são realizados de forma independente. A equipe por trás da iniciativa é composta somente por pessoas negras, o que, segundo o produtor geral do Tem Preto no Sul e um dos fundadores do coletivo Stay Black, Lucas Uilson da Silva, é uma forma de criar oportunidades em outras áreas operacionais do meio produtivo da música.
“Através da criação desse espaço e fomento de uma cena onde estamos no protagonismo, acreditamos que vamos impactar não só em nosso meio, mas na sociedade em geral, revolucionando um mercado que até então nos trata como recorte, nos colocando sempre numa posição de cotas em que nunca podemos ser todos ou ser muitos, sempre somos um ou dois”, explica Lucas, também conhecido pelo nome artístico de Zilladxg.
O racismo estrutural diminui o espaço negro na música
Zilladxg defende que a baixa visibilidade negra dentro da música é um reflexo do racismo estrutural da sociedade. Conforme o produtor, existe um número cada vez maior de negros na música, mas muitos acabam desistindo por conta da invisibilização, da falta de recursos e oportunidades.
“Quem majoritariamente detém os recursos são pessoas brancas, sejam elas produtoras, empresárias, gerentes de marcas que patrocinam o meio cultural, donas de casas de shows, mídias etc. Enquanto o racismo e o privilégio de classes não forem postos na área central do debate e a presença negra nessas áreas ainda for pequena, as oportunidades seguirão nos desfavorecendo”, afirma.
O músico, poeta e educador popular Richard Burgdurff, conhecido pelo nome artístico de Richard Serraria, acrescenta que os negros sempre tiveram uma presença na música ao longo da história do Rio Grande do Sul. Porém, o racismo estrutural da sociedade apagou a identidade deles, principalmente por causa do tradicionalismo gaúcho.
“O tradicionalismo constrói um folclore que boa parte da sociedade gaúcha toma como oficial e que passa a vigorar como uma verdade. E, nesse folclore, não existe a presença negra. Mas a cultura negra existe e é forte até hoje, inclusive dentro da música. A riqueza do Estado foi construída com mão de obra negra. Então, como pode não haver presença negra na música?”, questiona Richard, que é doutor em Estudos de Literatura Brasileira pela UFRGS.
iniciativas como a Tem Preto no Sul, na opinião de Richard, são importantes para furar bloqueios e mudar o cenário atual da música, em que os negros encontram maior dificuldade de produzir, apresentar e disseminar sua obra. “O racismo e a desigualdade social levam muitos artistas negros a não terem boas condições de gravar suas músicas. Toda brecha, todo espaço que houver para mudar esse cenário e incluir esse tipo de conteúdo, eu considero boa”, defende.
Para Zilladxg, episódios como o assassinato de George Floyd, nos Estados Unidos, e do menino João Pedro e da vereadora Marielle Franco, no Brasil, não são nenhuma novidade para a população negra. O genocídio da população preta, acredita o produtor, perdura por séculos, se agigantou e ficou cada vez mais incabível nas últimas décadas.
“Nossa organização trabalha para dar voz e vez para essa camada da sociedade historicamente marginalizada e que muito contribui para o nosso país, econômica e culturalmente”, avalia Zilladxg. “Nossas vidas e sonhos devem ser levados a sério. E essa não deve ser uma missão somente das pessoas pretas. Toda sociedade deve e precisa reconhecer essa contribuição e agir para sanar essa triste realidade. Essa deve ser uma luta de todos.”
Os interessados em se inscreverem no projeto Tem Preto no Sul podem fazer sua inscrição por meio deste formulário até o dia 20 de junho.