No início de março, um pouco antes do início da pandemia do novo coronavírus, conhecemos o Programa L&R: Leitura & Remição – uma parceria da Unisinos, por meio do Projeto Chance, com o Presídio Estadual de Taquara (Petaq). Aproveitando a liberdade de trabalhar fora de casa, que nem sabíamos, na época, ser um privilégio, saímos de São Leopoldo rumo à Taquara, localizada no pé da Serra, distante 86 quilômetros de Porto Alegre. A nossa incursão foi na companhia das professoras do curso de Letras, e o resultado dessa experiência, completamente nova para esta repórter, é o que você vai ler a seguir.
A chegada no presídio
O Presídio Estadual de Taquara é composto por um conjunto de prédios azuis no alto do Morro do Leôncio. Para entrar nele, é preciso enfrentar uma estrada de chão batido que termina em um grande portão eletrônico. Nas construções abaixo do portão principal fica o Anexo, com os apenados do regime semiaberto. No topo do morro, os prédios do regime fechado e o setor administrativo. De lá, é possível ver quase toda a cidade de Taquara.
Quem recebeu a equipe do Programa L&R foi a psicóloga da Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe), Kamêni Rolim. As professoras do curso de Letras Isabel Arendt e Andrea Wolwacz e o aluno Bruno Evaldt se encontraram com a diretora do Petaq, Mara Pimentel, e a defensora pública Ana Paula Dal Igna. Durante uma hora, as profissionais conversaram sobre os encontros anteriores e os cuidados que as professoras vêm tomando para adequar o projeto ao perfil do público da casa prisional, que em sua maioria não tem sequer o Ensino Fundamental completo. Dessa forma, conseguem mais o engajamento dos apenados e auxiliam na ressocialização deles.
A população do Petaq se divide entre os 150 detentos do regime fechado e os quase 80 que ficam no Anexo. O programa Leitura & Remição trabalha com os apenados do regime fechado e tem como objetivo principal a educação informal, ou seja, não há preocupação com conteúdos específicos do ensino básico. Concretamente, o programa dá possibilidade de remição de quatro dias de pena por livro efetivamente lido. “A gente recebe muita demanda deles, tudo o que a gente lança tem procura”, explicou a psicóloga Kamêni.
Medo do medo
O Programa possibilita que a universidade entre no ambiente e na rotina dos presos, e os altere. Trata-se de uma ação que envolve muito planejamento e é cercada de cuidados. Os encontros do L&R acontecem em uma galeria para detentos do regime fechado. Para entrar neste espaço, é preciso passar por três grades de ferro. Cada vez que as professoras atravessam uma, precisam esperar a porta fechar atrás delas, e só então têm permissão para continuar. O espaço, utilizado para atividades em grupo com os apenados, contém um quadro e diversas cadeiras. Há apenas cinco aberturas para ventilação; as janelas são lacradas. O único barulho que se conseguia escutar naquele momento era o dos ventiladores pendurados nas duas das quatro paredes da galeria. Fazia muito calor naquela tarde. A temperatura marcava 31ºC. As cadeiras já estavam organizadas em círculo quando os alunos chegaram. “Podem passar”, disse o agente penitenciário responsável pela escolta. Doze apenados atravessaram as grades e, timidamente, encontraram um lugar para sentar.
Era a quarta vez que as professoras iam ao Presídio, mas era a primeira participação para a maioria dos presos. Eles estavam tímidos e procuravam não olhar no rosto das professoras. Após uma saudação, Isabel pediu a atenção dos presentes para que escutassem uma música do Paralamas do Sucesso:
“Ouve o que eu te digo, vou te contar um segredo: é muito lucrativo que o mundo tenha medo.” A canção foi utilizada pelas mediadoras para iniciar a oficina. À pedido delas, cada um dos apenados escreveu em um papel seus temores e entregou para outro colega. O medo é um sentimento humano. Aquelas pessoas, privadas de liberdade, sentem tanto medo quanto as que estão livres. “O medo existe para organizar as formas como vemos as coisas”, completou a psicóloga Kâmeni.
Os medos, escritos nos papéis, eram lidos em voz alta pelos participantes: “Tenho medo de não ver minha família”; “Meu medo é de apontar o dedo e apontar errado”; “Tenho medo de não ser lembrado como algo positivo, principalmente, pela minha família”; O encontro mostrou que os presos se preocupavam, também, com os parentes e o risco de contrair o coronavírus, que estava começando a aparecer no país. Mas as frases escritas também mostravam os desejos deles para o futuro. “Quem foi o M. D.*? Por enquanto eu sou presidiário, mas eu quero mudar isso”, contou um dos participantes do projeto.
O grupo então recebeu o novo livro para leitura: “Max e os felinos”, de Moacyr Scliar. A história gira em torno da vida de Max, suas escolhas, seus medos e as consequências de suas atitudes. Os livros são emprestados para os presos, que devem devolvê-los no dia da escrita do relatório, mas dois exemplares ficam no presídio para que outros apenados, além do grupo do L&R, possam ter acesso. “Eles vão ser disseminadores da leitura de outros lá dentro, porque esse livro vai ser lido por eles e por todos”, contou a professora Isabel.
Eles têm apenas duas horas por dia no pátio e não conseguem apreciar a vista da cidade. Entretanto, através da leitura, eles viajam para diferentes mundos e realidades. Talvez essa seja a liberdade possível e necessária para que a ressocialização aconteça.
Os homens presentes na oficina se comunicavam com a cabeça baixa e uma voz sussurrada. Era difícil escutá-los entre o som dos ventiladores. A forma como se expressavam revela também as consequências dos preconceitos que a sociedade coloca naquele grupo. Com idades entre 20 e 30 anos, eles começaram no projeto pela chance de sair mais cedo daquela situação. Mas permaneceram pela experiência que a literatura proporciona. “Eu peguei gosto pela leitura, ela acaba abrindo a mente”, explicou V.G..
Dos participantes daquela tarde, cinco estão no projeto desde o início. Muitos saíram por medo de serem avaliados. Os que ficam, incentivam outros a entrarem no programa e discutem, nos momentos em que se encontram, a história e suas opiniões sobre o desenrolar da narrativa. “Poucos participaram desse último encontro e eles ficaram preocupados, então eles mobilizam os demais para que a atividade continue”, contou Kamêni. M.D., o mais falante do grupo, contou ter lido apenas um livro durante toda a vida. Desde que está preso, há um ano, já leu mais de 12, nem todos pelo programa. Já E.L. espera que a literatura o ajude a lidar com a vida: “Existem pessoas, no sistema prisional, que querem viver em sociedade”.
Todos os participantes, novos ou não no programa, enxergam a importância do projeto. Se mostram felizes em dividir suas experiências e agradecem às professoras por se importarem. Ao relatar o que sentem e como vêem esta experiência, eles contam que, além da remição da pena, o programa proporciona um refúgio para a situação em que estão.
A forma como se relacionam com os outros também mudou depois do projeto. A. T. costumava dividir a cela – um espaço com quatro paredes e uma janelinha – com outro participante. Durante um dos ciclos, estavam lendo um livro de mistério e se reuniam todos os dias para discutir as teorias sobre a história. Essa conversa, que começou dentro da cela, se espalhou para todo o presídio, envolvendo não só os membros do L&R, mas, também, outros apenados. “Eles estão trabalhando outras questões ao ler, que eu acho que são fundamentais”, explicou a professora Andrea.
Eles esperam o mês inteiro pela dinâmica e o encontro com as professoras. O grupo, constituído, principalmente, por homens que não costumavam ler, encontraram um conforto naquele pequeno espaço. “Eles ampliam os horizontes, os conhecimentos e eles podem refletir sobre outras possibilidades de uma vida futura e melhor para eles”, completou a professora. Com interesses em comum, agora eles sugerem livros para familiares que os visitam e procuram ler além do que o projeto proporciona. Hoje, eles leem para sair do presídio. Em breve, estarão reinseridos na sociedade com uma nova visão do mundo. Não os encontraremos mais no Petaq.
Medo do desconhecido
As quatro professoras que fazem o Programa L&R acontecer se intercalam nas visitas. Andrea Wolwacz, Eliana Pritsch, Isabel Arendt e Márcia Duarte são os nomes por trás da preparação das oficinas e da escolha dos livros. Andrea é professora e pesquisadora em Literaturas de Língua Inglesa. As áreas de interesse de Eliana são Literatura e Línguas Clássicas. Já Isabel têm experiência nas áreas de Letras e História, com ênfase em Literatura e na cultura alemã. Márcia atua com Literatura brasileira e gaúcha. A seleção de livros para o programa foi feita com muito cuidado, levando em conta as áreas de conhecimento de cada professora, e foi se modificando à medida que elas conheciam melhor o seu público leitor.
O primeiro encontro, segundo elas, foi cheio de dúvidas. As pessoas não se conheciam e havia uma estranheza no ar. Não era possível prever como o projeto ia ser recebido. É comum ter medo do que se desconhece. Esse sentimento foi se desfazendo no decorrer dos encontros e com a abertura dos apenados. “Pra mim, foi uma sala de aula. Eu comecei a interagir com eles e fiquei emocionada com o que relataram”, explicou a professora Andrea. A sensação é compartilhada por todas as docentes que veem o projeto como algo positivo para elas e, principalmente, para os participantes. “A gente só conhece o olhar negativo sobre o sistema prisional e, de repente, tu tem uma ação positiva e tu vê aflorar o lado humano deles”, afirmou Isabel.
O respeito pelas profissionais e a vontade de participar pode ser percebida pelas professoras desde o primeiro encontro, que aconteceu no fim do ano passado. Era terça-feira, 15 de outubro, quando Isabel entrava no Petaq pela primeira vez. Nesse dia, ela estava acompanhada de outra aluna do curso de Letras, Bruna Piason. Bruna relatou que passou por diversas transformações em apenas uma visita. Compreendeu que a visão que tinha do sistema prisional era equivocada. “Eles estão ali por alguma coisa que fizeram, mas isso foi levado por outra coisa maior, é tudo questão de contexto. É muito profundo e complicado”, completou a estudante.
O livro escolhido naquele momento foi “Antes que o mundo acabe,” do escritor gaúcho Marcelo Carneiro da Cunha. Foi o primeiro por ser um livro de fácil acesso às professoras, já que é uma das leituras pedidas no decorrer do curso. Para conseguir os 15 exemplares, elas levantaram uma campanha nas redes sociais e conseguiram que alunos e ex-alunos cedessem suas cópias para o programa. Resultado, os apenados não só leram o livro em um mês, mas também emprestaram para outros detentos que não participavam do projeto. No fim da primeira oficina, os participantes agradeceram às professoras pela disponibilidade e as aplaudiram, em homenagem ao Dia do Professor.
Coragem de seguir em frente
O Programa L&R traz a esses homens algo difícil de manter ou desenvolver na prisão: um olhar sensível que os façam relembrarem da humanidade que carregam. “Nós precisamos, enquanto sociedade, fazer ações para melhorá-los quando saírem daqui, porque vão sair e, se não fizermos nada, a perspectiva é pior ainda”, explicou Mara Pimentel. O encarceramento amplifica as vulnerabilidades. Ele gera sofrimento. “A gente tem uma cultura que vai olhar para o negativo, mas e além disso? Todas as pessoas passam por dificuldades, mas, pra quem cumpre pena, parece que amplifica”, explicou Kamêni. O trabalho realizado pelo L&R permite momentos para sair desse encarceramento e isso modifica o olhar que esse indivíduo tem de si mesmo e do que o cerca.
Em diversos momentos, os participantes relataram que aquela atividade faz com que se sintam ouvidos. Eles se sentem “humanos de novo”, como já foi declarado em um dos relatórios entregues às professoras. Em uma breve busca ao dicionário, é possível encontrar que a definição de humanidade, entre outras coisas, remete ao “sentimento de compaixão entre os seres humanos”. Ao se colocar no lugar de outra pessoa e a tratar com empatia, mostramos um lado da sociedade pouco visto por aqueles homens. A postura da cabeça baixa mostra o quanto se julgam e se sentem julgados. A voz sussurrada escancara que, além da privação de liberdade, o encarceramento também os tolhe do direito de expressão. Ao se tornarem leitores, eles não apenas viajam pela literatura, aprendem a lidar com sentimentos, a resolver problemas e criam uma rede de apoio que vai muito além das paredes da cela. Independentemente do crime que cometeram, todas as pessoas – privadas de liberdade ou não – estão inseridas em um contexto social que influencia suas escolhas. E todas elas merecem ser ouvidas.
No fim da tarde, o grupo se despediu. Os apenados, com a nova leitura, foram acompanhados de volta para as celas pelo agente penitenciário. As professoras seguiram o caminho oposto. Junto com a psicóloga, saíram do prédio azul e foram em direção ao estacionamento. Direções diferentes, mas um mesmo objetivo: a liberdade de buscarem e a determinação de alcançarem um futuro melhor.
*Para manter a privacidade dos entrevistados, os nomes não serão divulgados