Por Ângelo Gabriel
Após quase dois anos como apresentador do Jornal Hoje, da Rede Globo, Dony De Nuccio pediu demissão. Depois de ter e-mails vazados, foi descoberto que o jornalista era proprietário da Prime Talk, que prestou serviços para o Banco Bradesco. Durante dois anos, a empresa faturou com vídeos e palestras mais de R$ 7 milhões.
Nuccio também tinha uma parceria com a empresa de planos de saúde Amil, de onde recebeu R$ 1,2 milhão para trabalhos de assessoria. Ele sugeria pautas –que fossem relevantes para aparecer na Rede Globo –, informava fontes e contava em detalhes o funcionamento das reportagens.
As atividades realizadas por Dony feriram o código de ética e as regras internas da Rede Globo. O trabalho duplo configura a quebra de um dos princípios editoriais da emissora, que é a isenção jornalística. Ou seja, os jornalistas da Globo não podem, por contrato, vincularem-se a uma marca comercial.
No entanto, não é incomum jornalistas realizarem trabalhos de assessoria para outras empresas. Da mesma emissora, Renata Vasconcellos e Rodrigo Bocardi, que apresentam o Jornal Nacional, também fizeram parte de trabalhos do Bradesco. Bocardi realizou uma série de palestras para funcionários em evento fechado e sem transmissão. Vasconcellos foi contratada como apresentadora em vídeo voltado, também, para funcionários.
Os globais Chico Pinheiro, Christiane Pelajo e Caco Barcellos também são exemplos de jornalistas que trabalham com o media training, um serviço que oferece palestras sobre política e economia para empresários, além melhorar a oratória e o contato com a imprensa.
No Brasil, a prática da realização de assessoria de imprensa por jornalistas ligados a empresas jornalísticas – e como manter a ética trabalhando nas duas funções – é um assunto debatido há anos. De um lado, o jornalista deve ter o compromisso com o público e com a veracidade das informações. Do outro, o assessor de imprensa trabalha para uma empresa e “defende” os interesses dela.
Para entender um pouco melhor as questões que envolvem a ética dos “jornalistas-assessores”, conversamos com Vera Daisy Barcellos Costa, presidenta do Sindicato dos Jornalistas do Rio Grande do Sul e da Comissão Nacional de Ética da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), e com Basílio Sartor, doutor em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Mescla — De que maneira os jornalistas que exercem a profissão em uma redação e, ao mesmo tempo, trabalham como assessores de imprensa podem manter a ética ao realizar as duas atividades?
Basílio — O Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros determina que o jornalista não pode realizar coberturas para o meio de comunicação em que trabalha sobre organizações nas quais também atua como assessor, pois, obviamente, isso caracterizaria um conflito de interesses. Se o jornalista, em uma redação, não trabalha nas pautas que envolvem seus assessorados, essa dupla função é permitida pelo Código. Contudo, vale destacar que essa permissão (mesmo condicionada a esses termos) tem sido contestada por diversos profissionais e pesquisadores do campo jornalístico. Para eles, o exercício da atividade jornalística em uma redação é sempre incompatível com a função de assessor de imprensa. Esse é o entendimento comum à maioria dos países que têm uma tradição forte de jornalismo e democracia.
Vera — Os princípios éticos devem primar no desempenho do trabalho profissional dos jornalistas. A ética é a ferramenta básica e indicadora de que não se pode servir a “dois senhores ao mesmo tempo”. E o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, em vigência desde 2007, organizado pela Fenaj, explicita em seu artigo sétimo, parágrafo sexto, o que o jornalista não pode realizar:
VI – realizar cobertura jornalística para o meio de comunicação em que trabalha sobre organizações públicas, privadas ou não-governamentais, da qual seja assessor, empregado, prestador de serviço ou proprietário, nem utilizar o referido veículo para defender os interesses dessas instituições ou de autoridades a elas relacionadas; (FENAJ, Cód. De Ética dos Jorn. Brasileiros – publicação de 05/2008)
Nesse sentido, alguns argumentam que as empresas não podem pagar os salários mais altos para que os jornalistas fiquem apenas trabalhando em um lugar e não façam assessorias diversas. Uma realidade que, por várias vezes, se apresenta para categoria e para qual o Sindicato está atento, convergindo sua atuação na convenção salarial anual e na assinatura do Acordo Coletivo de Trabalho, que resulta no aumento salarial dos profissionais.
Mescla — O artigo 6º do Código de Ética diz que “o exercício da profissão de jornalista é uma atividade de natureza social e de finalidade pública”. Ao realizar trabalhos de media training para uma empresa privada, produzindo conteúdo de assessoria para ela, o jornalista não passa a contradizer a profissão e a danificar a credibilidade dela?
Basílio — Se o jornalista trabalha somente como assessor de imprensa, não há problema. Mas, quando exerce dupla função (assessoria e redação), a resposta é sim. A atividade de assessoria de imprensa necessariamente tem relação com interesses privados, enquanto o jornalismo deve pautar-se pelo interesse público. O trabalho de assessoria de imprensa é absolutamente necessário, legítimo, e pode ser exercido por jornalistas, que detêm conhecimentos e técnicas pertinentes à atuação neste campo profissional. O conflito ético ocorre quando o jornalista atua em assessoria e, ao mesmo tempo, em redação. Na assessoria, o profissional deve defender a imagem pública da organização para a qual trabalha. Na redação, deve defender o interesse público. Essas duas finalidades muitas vezes são conflitantes.
Vera — Aqui, cabe um reparo inicial quanto à citação do artigo 6º, uma vez que o mesmo não compõe a redação do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros da Fenaj, aprovado em Vitória, no Espírito Santo, em 2007. Nesse sentido, salientamos que o “compromisso fundamental do jornalista é com a verdade no relato dos fatos”, devendo pautar seu trabalho na “precisa apuração dos acontecimentos e na sua correta divulgação”. (Art. 4º, Código de Ética/FENAJ). E mais, ainda seguindo o referido código, “o jornalista não pode realizar cobertura jornalística para o meio de comunicação em que trabalha sobre organizações públicas, privadas ou não-governamentais, da qual seja assessor, empregados, prestador de serviço ou proprietário, nem utilizar o referido veículo para defender os interesses dessas instituições ou de autoridades a elas relacionadas”.
Mescla — Na Rede Globo, Dony de Nuccio, Renata Vasconcellos e Rodrigo Bocardi realizaram trabalhos de assessoria de imprensa enquanto eram jornalistas. A emissora permite o trabalho, contanto que ele não seja transmitido em nenhum local e que o jornalista não se torne o rosto da empresa. Apesar de ser permitido, como isso influencia a opinião do a respeito dos jornalistas? No caso de quebra do código ético dos jornalistas, mas não do código de regras da empresa, como o caso deveria ser resolvido?
Basílio — Vamos supor que um veículo de comunicação produza uma reportagem sobre a queda de um avião que resultou na morte da tripulação e dos passageiros. Do ponto de vista do público, interessa saber quem são os responsáveis por essa tragédia, para que se faça justiça com as vítimas e se garanta a segurança nos voos. Agora, vamos imaginar que o jornalista que está assinando essa reportagem também seja assessor de imprensa da companhia aérea envolvida no acidente. O público poderá confiar na apuração desse jornalista, sabendo que ele também atua na defesa da imagem dessa empresa? É claro que não. Poderíamos pensar em muitos outros exemplos nos quais essa dupla função é problemática. Então, sim, ela tem influência negativa na credibilidade do profissional e do veículo. Mesmo que a reportagem não seja assinada pelo assessor daquela organização, pode haver desconfiança se houver, no mesmo veículo, outro jornalista que seja assessor. Essa questão precisa ser pauta de debate público, para que casos assim sejam rejeitados pela opinião pública. O problema é que, no Brasil, poucos conhecem esse tema. A maior parte da sociedade sequer compreende a figura do assessor de imprensa, e menos ainda as relações que se estabelecem entre jornalistas, fontes e assessores de imprensa, com todos esses potenciais conflitos de natureza ética que, no final das contas, interferem de forma decisiva na qualidade da produção jornalística e no direito à informação. Enquanto este debate não se ampliar para além do campo jornalístico, casos assim continuarão se repetindo, e sua solução continuará dependendo apenas da decisão das empresas jornalísticas, que, em geral, são bastante condescendentes com esse tipo de prática.
Vera — Há, obviamente, quebra do Código de Ética pela empresa, que constitui internamente seu modus operandi sem respeitar o que diz a legislação profissional. E os profissionais vão se submetendo na medida em que se sentem “necessitados” de mais dinheiro no final do mês. Mas, quando assinam seus contratos, devem ser alertados para a conivência e o tipo de situação antiética que vão se colocar. E no final, se quiserem buscar na Justiça algum direito, que o façam. Mas, há que se verificar o que diz o Acordo Coletivo assinado e quais os benefícios e restrições ali colocados, também.