Sobre os MilTons
O coletivo MilTons é formado por 12 homens negros que representam diversos tons de negritude, com suas sexualidades, religiões e masculinidades. A ideia foi do jornalista Airan Albino há quase dois anos, e o objetivo é debater temas como racismo, paternidade, religião, agressividade e relacionamentos. “Idealizei o projeto por conta de questões pessoais. Descobri o que era masculinidade vendo um filme e fui atrás de estudos sobre o tema. Achei massa e quis começar um projeto em Porto Alegre sobre isso”, diz. O filme que ele se refere é Moonlight, vencedor do Oscar de Melhor Filme em 2017, formado por um elenco todo negro e revelador de uma temática que envolve diversidade sexual e racismo.
Airan reuniu amigos, conhecidos e parentes e deu início ao projeto cujo único requisito para o ingresso era que os integrantes se identificassem como homens negros. Desde então, o grupo se reúne mensalmente no Ponto de Cultura Africanamente e no Odomodê para compartilhar pensamentos e experiências. “São espaços geridos por pessoas negras. Preferimos apoiar espaços como esses do que fazer nossas reuniões em um local onde não-negros estão se beneficiando”, explica Airan.
Ubuntu
O Mescla acompanhou uma roda de conversa mediada pelo psicólogo Cainã Nascimento, além de outros membros do MilTons. O papo não tinha um tema específico. A ideia era deixar que a própria roda pautasse o encontro. Assim como nas reuniões mensais do coletivo, cada pessoa presente na roda fez uma apresentação sucinta de si: nome, idade e o motivo que o trouxe até lá.
Meu nome é Pedro. Já ouvi falar do Miltons há um bom tempo. Minha irmã e uma galera sempre me falavam: “Você tem que colar neles, e eu nunca tive a oportunidade de colar no grupo”. Aí surgiu a oportunidade eu eu disse: “Vou lá, aprender bastante, ouvir bastante e agregar de alguma forma”.
Gabriel Muniz, 34 anos, é baiano e filho da contadora de histórias Cris Muniz. Eles chegaram ao evento por acaso. Queria aproveitar as atividades da Virada Sustentável (evento que abrigou a roda) e trazer a mãe para conhecer um pouquinho de Porto Alegre. “É interessante continuar tendo esse debate, porque realmente é algo muito necessário. Ainda mais num contexto em que os homens negros estão sendo exterminados”, diz. “Aqui, no Rio Grande do Sul, eu percebo que ainda existem algumas questões bem delicadas entre mulheres negras e homens negros que a gente precisa compreender de uma maneira geral e de uma maneira específica”, completa.
Ao longo do debate, temas como educação e representatividade nas escolas foram surgindo. Em um ambiente de confraternização, mulheres negras pautavam os homens na busca de respostas coletivas. A fala de uma das jovens, que não entendia a dificuldade do irmão de 13 anos para chorar, representava o que por muitos anos foi imposto ao homem negro: ser forte. Mas sim, o homem negro também chora! Aos poucos, a roda foi desconstruindo a persona daquele que resiste a tudo e a todos.
Mais do que a força, é a fragilidade da condição de homem negro que aparece nas estatísticas. Segundo o Atlas da Violência de 2018, elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) com dados de 2016, os “não negros” tiveram taxa de 16 mortes a cada 100 mil pessoas, enquanto a taxa da população negra foi de 40 óbitos a cada 100 mil pessoas.
O Atlas também revela que mais de meio milhão de vidas foram perdidas devido à violência em apenas 10 anos, a maior parte jovens de 15 a 29 anos, negros e habitantes da Região Norte e Nordeste do Brasil. Além disso, precisamos ressaltar que 55% da população brasileira é negra, segundo o IBGE.
Durante a roda de conversa, cada fala era recebida sem julgamento; todos eram reconhecidos e humanizados ao compartilhar suas visões. A prática do ubuntu, termo que veio dos países sul-africanos, era constante. Ubuntu pode significar “humanidade para com os outros” ou “eu sou porque nós somos” e é uma expressão chave dos encontros mensais do coletivo.
O evento que ocorreu na Virada Sustentável foi apenas uma amostra dos constantes debates, com tema específicos, que ocorrem a cada mês reunindo os 12 integrantes. A delimitação dos temas serve para que os organizadores leiam bibliografias específicas, ou ainda se preparar emocionalmente para assuntos que possam tocar em questões íntimas.
Quem são eles?
Cainã Nascimento, 27 anos, psicólogo, é o mediador do grupo e se vê como uma ponte nas rodas de conversa. “Meu papel dentro do coletivo é de facilitação de rodas de partilha e conversas. Pela minha formação enquanto psicólogo, eu tenho um pouco mais de bagagem para ajudar com que, nos momentos de troca e de conversa, a gente possa fazer isso sem se machucar”, explica.
Dono de uma fala serena e cheia de alteridade, Cainã também é reconhecido pelo abraço confortante que dá a quem chega. “Eu sou psicólogo clínico, trabalho com clínica privada, mas também atuo em processos de grupo e meditação. Sou uma pessoa muito afortunada por encontrar um trabalho que me deixa gratificado e que é coerente com os meus valores”, conta.
Para Cainã, o mito da democracia racial faz com que pessoas negras não enxerguem o racismo sutil e até explícito que acontece ao seu redor. O grupo é uma maneira de desvelar o racismo estrutural, honrando aqueles que já foram e criando um lugar melhor para os que estão por vir. “O coletivo dá uma oportunidade para que homens falem o que pensam e o que sentem em um espaço seguro, que os desafia sem os torturar por serem quem são”, diz.
Bruno Teixeira, 27 anos, jornalista, mora no bairro Menino Deus, mas cresceu no Belém Velho, em Porto Alegre. Sua construção pessoal está muito relacionada a esse bairro e as pessoas que moravam lá. Hoje, ele sente a importância de levar os debates sobre masculinidades para as periferias, para que essas falas não fiquem fechadas a grupos que já vem da academia.
Bruno foi um dos fundadores do grupo, e conta como surgiu o coletivo: “No início, tivemos a ideia de fazer um ensaio fotográfico sobre questões de masculinidade, e o Airan resolveu chamar o pessoal. Na época, teve um clipe do Kendrick Lamar da música “Element”, que se inspirava em fotos de um fotógrafo negro chamado Gordon Parks. A ideia do ensaio veio a partir dessas imagens”, lembra.
“Durante as primeiras reuniões para o ensaio fotográfico, começamos a discutir alguns temas, e foi aí que o grupo começou a tomar forma”, diz Bruno. “A gente tenta quebrar muitos estereótipos do que é ser um homem negro, de dizer para uma criança que ela vai ter que ser forte e aguentar tudo, que o homem negro consegue fazer tudo na cama. Aquilo que é ensinado e dito ao homem negro faz com que a gente tenha alguns comportamentos durante a vida que vão nos trazer sofrimento e levar esse sofrimento a outros”, comenta.
Airan é jornalista e se vê como o líder do coletivo por assumir a responsabilidade de organização dentro do MilTons. Para ele, a masculinidade negra tem que ser colocada no plural. “Há pontos em comum na forma como o corpo masculino negro é visto. Suspeito, perigoso, agressivo, hiperssexualizado também. Mas esses estereótipos não podem dizer que o negro é apenas isso. Então, o debate sobre masculinidades negras procura levar outras possibilidades de ver um homem negro”, reflete.
Airan diz que o coletivo não se coloca como entidade que tem uma missão, valores ou objetivos. “Nós descobrimos que conversar sobre as nossas questões em grupo nos faz bem, é terapêutico. Então, por que não levar essa experiência para outras pessoas? Levar essa terapia de grupo para jovens negros, pais negros, para mais homens negros? Ou, também, para pessoas que têm homens negros em seus círculos. O nosso papel é compartilhar conversando”, avalia.
Airan busca agregar diversas vozes no coletivo, sejam elas jovens, velhas, héteros, gays, trans, magras, gordas ou acadêmicas. “É importante falar de subjetividade para pessoas que são vistas, julgadas como corpos apenas. Existem muitos estudos sobre o negro não ser visto como humano, e como isso o coloca em um nível inferior perante o padrão (branco)”, explica.
Tudo começou com “Moonlight”
Lançado em 23 de fevereiro de 2017, Moonlight: sob a luz do luar acompanha a trajetória de Chiron, um jovem negro dos subúrbios de Miami, nos Estados Unidos, que descobre sua identidade e sexualidade ao longo da vida, enfrentando preconceitos, da infância à vida adulta. O filme foi escrito e dirigido por Barry Jenkins, e levou três estatuetas do Oscar: Melhor Filme, Melhor Roteiro Adaptado e Melhor Ator Coadjuvante para Mahershala Ali (primeiro ator muçulmano a ganhar um prêmio da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas norte-americana). Uma história que fala de amor, masculinidade e racismo, trazendo um elenco só de mulheres e homens negros.
Para Airan, esse foi o gatilho necessário para a criação do coletivo Miltons. “Eu amei o filme, mas não soube expressar o que estava sentindo. Só comecei a perceber quando conversei com gurias sobre o longa, e elas me disseram na hora que se tratava de masculinidades”, diz ele na descrição da página do coletivo. No início, em julho de 2017, veio a pergunta: o que é ser homem?
Em algum momento, você tem que decidir quem quer ser. Não pode deixar que ninguém decida por você. (Moonlight: sob a luz do luar – 2016)