Não é de hoje que os presídios do Rio Grande do Sul e do Brasil são destaque em capas de jornais e pauta para os defensores de direitos humanos. São casos de superlotação, de péssimas condições de higiene, de abusos e maus-tratos. Sem mencionar os episódios de rebelião, com mortes de servidores e detentos, como a que ocorreu em Manaus, capital do Amazonas, em maio deste ano. Uma briga entre os presos deixou 15 mortos no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj).
Com esse cenário de violações, é natural que o público em geral forme uma imagem de que o presídio é somente caos, sofrimento e desordem. Mas qual a imagem do presídio para quem vive diariamente naquele espaço? Foi com esse pensamento em mente que o professor Flávio Dutra, dos cursos de Jornalismo e de Fotografia da Unisinos, resolveu pesquisar. A ideia surgiu após ter feito uma reportagem no Presídio Central de Porto Alegre e se dar conta do quanto aquele mundo tinha coisas distintas do que era mostrado para a população. A proposta dele foi analisar os registros fotográficos feitos pelos detentos tanto do tradicional Presídio Central, como da Penitenciária Estadual de Porto Alegre, inaugurada há menos de um ano.*
“O que resolvi fazer é não ir pro presídio para eu fotografar, pro meu olhar de fora enxergar o que tinha ali dentro, mas de propor que eles enxergassem, que eles me mostrassem como eles veem, como eles vivem, o que eles veem” explica o professor. O trabalho integra sua pesquisa de mestrado no Instituto de Artes da UFRGS.
Porém, dar início ao trabalho foi muito mais difícil do que ele esperava devido principalmente às questões burocráticas. O professor levou quase um ano para conseguir concretizar sua ideia.A romaria passou por apresentar seu projeto para os gestores das penitenciárias, para a Susepe (Superintendência dos Serviços Penitenciários) e esperar… Meses depois , a aprovação saiu. Depois disso, seu projeto precisou ser aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFRGS, o que, novamente, levou mais tempo para acontecer. Nesse meio tempo, as penitenciárias trocaram suas administrações, o que obrigou Flávio a negociar novamente com os presídios a possibilidade de fazer seu trabalho.
Quando achou que estava tudo ok para o primeiro dia… nova surpresa: ao chegar para o trabalho de pesquisa, ele foi informado de que deveria ter enviado um e-mail listando os materiais que ele estaria levando para dentro da instituição…Bom, resultado: o trabalho mesmo só começaria duas semanas depois. É, fazer pesquisa no Brasil não é moleza!
Começando com… caixas de fósforos?
Superados todos os obstáculos, o professor finalmente pôde realizar o seu projeto com os presos. Para isso, ele iniciou seus trabalhos ministrando oficinas de fotografia aos detentos, onde eles puderam ter suas primeiras noções sobre foco, obturador, diafragma, fotômetro, entre outros elementos técnicos da fotografia. Em seguida, era o momento de botar a mão na massa.
Para colocar na prática o que o Flávio explicou sobre fotografia, os apenados se utilizaram de câmeras analógicas compactas que são apelidadas de “saboneteiras”. Em seguida, o professor e os presos produziram juntos câmeras analógicas feitas a partir de caixas de fósforo, que são chamadas de “câmeras pinhole”. Esse tipo de câmera consiste, basicamente, em uma caixa onde não entra luz, exceto por um pequeno furo feito manualmente. Pode se produzir essas câmeras com latas, caixas de fósforo, de chá, de sapato, entre outros materiais.
“É diferente, obviamente, de uma câmera, desse processo banal que a gente faz o tempo todo com o celular, que vê uma coisa, aperta um botão e imediatamente vem uma imagem ótima. Com uma câmera assim, obviamente, você não vai ter uma imagem ótima, e claramente não vai apertar um botão e ela vai aparecer. É um processo muito mais artesanal e lento, nesse sentido” explica o professor Flávio.
Um retrato bem-humorado
Com as câmeras pinhole, os detentos partiram para os cliques. A experiência resultou em imagens bem variadas do interior dos presídios. Para a psicóloga Cristina Magadan, que trabalha no Presídio Central de Porto Alegre e fez a mediação entre o Flávio e os detentos, as fotos são extremamente bem humoradas. “Ainda não tive a oportunidade de ver todas, mas as que vi procuravam retratar o cotidiano: brincadeiras, refeições, jogos entre eles e, principalmente, qualquer referência familiar que eles possuam na galeria”, conta Cristina.
A psicóloga afirma também que é importante para os reclusos que eles tenham contato com atividades novas – nesse caso, a fotografia – que fogem do seu cotidiano dentro da penitenciária e com as quais eles não têm familiaridade. Segundo ela, toda atividade que é levadas a eles, além de conhecimento técnico, acarreta também em elevação de autoestima e resgate da dignidade.
Pode rolar exposição!
Agora que Flávio finalmente está com as fotos em mãos ele está focado em entendê-las. O professor conta que o momento é de definir os critérios que ele utilizará para analisar as imagens e dar continuidade ao trabalho. Para esta parte de sua pesquisa, Flávio está utilizando o trabalho de autores como Georges Didi-Huberman, Michel Foucault e o cineasta Eduardo Coutinho.
Ele pensa também em, futuramente, organizar uma exposição das fotos. Porém, ele pretende primeiro escrever a dissertação, Mesmo assim, ele já conversou com os reeducandos sobre essa ideia de expor as fotos para todo mundo ver, e eles demonstraram entusiasmo com isso e deram ideias de lugares onde gostariam que a exposição acontecesse.
*Há autorização para divulgação das fotos tiradas pelos detentos