É inusitado que um documentário sobre a ditadura militar no Brasil seja descrito como uma história de amor. Ainda assim, é dessa forma que a documentarista, pesquisadora e produtora audiovisual Beth Formaggini descreve o próprio trabalho. O filme conta a história de Cláudio Guerra – ex-delegado do Departamento da Ordem Política e Social (Dops) do Espírito Santo e ex-agente do Serviço Nacional de Informações (SNI).
Conhecido como Pastor Cláudio, nome que deu origem ao título do documentário, o agora bispo evangélico descreve com detalhes o trabalho que exerceu durante os anos de ditadura, em especial na “Operação Radar” (1973-1976). Entre as funções como delegado do Dops, estava a de descartar corpos de torturados e desaparecidos políticos. Um dos métodos que o atual pastor contou ter utilizado foi a incineração.
Os detalhes vieram à tona em uma sala escura, lotada por quatro câmeras e um projetor. A entrevista para o documentário foi filmada e dirigida por Beth, porém conduzida por um pesquisador com experiência em tratamentos relacionados às vítimas de violência, sejam elas físicas ou psicológicas, especialista na escuta de pessoas, o psicólogo Eduardo Passos. Durante quatro horas, Cláudio Guerra relembrou os tempos do regime militar, revelou o paradeiro de vítimas da ditadura e disse ter encarado alguns dos fantasmas que o acompanham há mais de 40 anos.
Mas afinal: por que uma história de amor?
A diretora do documentário Beth Formaggini, sem saber, teve o primeiro contato com a história do ex-delegado Guerra em 2007, quando produziu seu primeiro longa sobre a ditadura: “Memória para Uso Diário”. Foi com esse trabalho que ela conheceu Ivanilda da Silva Veloso, uma das mulheres que tiveram os seus maridos assassinados pelo regime militar.
Ivanilda era esposa de Itair José Veloso, com quem teve quatro filhos. No documentário, Beth acompanha a viúva e sua incessante busca atrás de pistas que indicassem o paradeiro do marido desaparecido durante o AI 5. No decorrer dos 94 minutos de filme, surge uma possível explicação para o ocorrido: Itair teria sido preso pela Operação Radar.
A história de Ivanilda, mesmo após o documentário, não saiu dos pensamentos de Beth. Cinco anos após se conhecerem, a produtora encontrou uma segunda pista. O livro “Memórias de Uma Guerra Suja”, lançado em 2012 e escrito por Rogério Medeiros e Marcelo Netto, trazia algumas declarações de um ex-delegado do Dops que participara da Operação Radar: Cláudio Guerra.
“Eu procurei a viúva e falei para ela: olha, Ivanilda, eu li um livro que tem aqui um pastor que assassinou um membro do partido comunista que morreu na mesma operação que o teu marido. Aí eu falei para ela: vou procurar ele para ver se sabe alguma notícia do Itair ” – conta Beth.
A entrevista que originou o documentário foi feita após Beth captar recursos junto a editais e outras parcerias. A gravação entre o ex-delegado e o psicólogo foi feita em único dia, ao longo de quatro horas, em 2015. Nessa entrevista, o então agente foi questionado sobre o paradeiro de 19 vítimas – uma delas sendo Itair. Cláudio Guerra apresentou uma história distinta daquela tida, até então, como a oficial.
O material produzido em 2015 foi utilizado para fazer dois filmes. Um deles, um curta-metragem lançado no mesmo ano, chamado “Uma Família Ilustre”, revela a história da Operação Radar. O segundo filme, lançado em 2019, é o longa-metragem “Pastor Cláudio”.
A história da vítima 155
Sindicalista e integrante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), Itair José Veloso nasceu em 1930 em Faria Lemos (MG). Tinha 45 anos quando desapareceu. Informações oficiais apontam que ele foi levado por agentes do DOI-CODI/SP, preso por praticar crimes de atividades subversivas em nome do PCB.
O nome de Itair consta nos registros da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Ele é o número 155 de uma lista com 362 vítimas. O texto da Comissão traz o depoimento do sargento Marival Chaves em uma entrevista dada à revista Veja em 1992. Segundo o sargento, Itair teria morrido devido a tortura (choque térmico). O corpo, junto de outros, foi jogado da ponte do Rio Novo, em Avaré (SP).
A versão do agora pastor Cláudio foi outra. Na época em que era delegado do Dops e agente do SNI, Guerra foi um dos militares que participaram da Operação Radar – o movimento militar responsável pelo sequestro de Itair e outras 12 vítimas, todas do partido comunista brasileiro. Eles teriam sido torturados, mortos e levados até Guerra. O ex-delegado contou que incinerou as vítimas na Usina de Açúcar de Cambaíba, em Campos dos Goytacazes (RJ), cerca de 280km da capital do estado carioca. Apesar de ter tido a responsabilidade de dar destino aos corpos, Cláudio Guerra matou pelo menos uma das vítimas – Nestor Vera. Segundo o ex-delegado, Nestor encontrava-se extremamente ferido após uma sessão de tortura. O ex-delegado caracterizou o disparo contra a vítima como um “gesto de misericórdia”.
São duas versões para os mesmos assassinatos, mas as documentações oficiais, disponíveis no site da Comissão e publicados pelo Diário Oficial da União (DOU), não levam em conta as revelações do ex-agente do SNI, conhecidas desde 2012, a partir da investigação disponível no livro “Memórias de Uma Guerra Suja”. Nem Itair nem Nestor foram, oficialmente, queimado e morto pelo atual pastor.
A historiadora e o algoz
Visitar este período tão difícil da história brasileira não foi tarefa fácil para a documentarista. O trabalho de Beth teve duração de 1 ano e 4 horas. Um ano de preparação, quatro horas de entrevista. Cláudio Guerra, segundo Beth, aceitou prontamente ser entrevistado já no primeiro convite. A documentarista não se encontrou com o pastor antes ou depois do dia da gravação. O único contato presencial foi durante a gravação da entrevista, como diretora de cena: “Estar trancada dentro de um estúdio com uma pessoa que revela ter cometido violações tão graves é uma experiência muito dolorosa, muito difícil”, revelou a produtora.
Apesar das dificuldades emocionais de voltar ao passado, Beth, que é historiadora de formação, entende ser fundamental revisitarmos o regime militar de nosso país. Para ela, conhecer a história é uma forma de evitar que graves violações, como a tortura, se repitam no presente.
Beth vê necessidade de debater o período de 21 anos (1964 – 1985) também em função dos movimentos que pedem pelo retorno do regime militar. “Acredito que grande parte das pessoas que pedem a volta da ditadura, é pura falta de informação. Esse filme vem para ajudar as pessoas a se informarem e a debater a história. E isso não é crime”, argumentou.
Um documentário sobre ditadura: da teoria à prática
O “Pastor Cláudio” foi financeiramente produzido pouco a pouco. Isso explica o gap entre o lançamento do curta e a estreia do longa. Foram quatro anos de trabalho para finalizar a obra. Tudo começou quando a historiadora ganhou dois editais da RioFilme. O dinheiro desses editais somado a parcerias comerciais mais finanças da 4Ventos (produtora de Beth) bancou a história do bispo evangélico.
Lá no site da 4Ventos, você pode assistir de graça dois dos documentários sobre a ditadura militar: “Memória para Uso Diário” e “Uma Família Ilustre”.
Fontes de inspiração
De todo o material pesquisado, Beth destacou alguns livros e documentários que a auxiliaram durante essa jornada. No card abaixo, destacamos alguns deles:
Essa aqui é a equipe responsável pela produção do documentário: