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Revolução digital: como a Inteligência Artificial está transformando a Indústria Criativa 
"Criações artísticas produzidas por IAs mudaram o ambiente do setor e trouxeram muitas incertezas; especialistas convidados pelo Mescla discutem os principais problemas provocados pela nova tecnologia – e os acertos também"
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Quem nunca assistiu aos filmes da franquia “Exterminador do Futuro” e se perguntou se a Inteligência Artificial (IA) poderia realmente se tornar uma ameaça à humanidade, como a icônica “Skynet”? Embora essa seja uma ficção cinematográfica, a realidade atual da Inteligência Artificial, como o ChatGPT, desenvolvido pela OpenAI, levanta discussões urgentes que transcendem as telas de cinema. Nesta reportagem especial, além das origens, vamos explorar quais são os efeitos desses assistentes virtuais na era da pós-verdade, quais são as suas limitações, como podem contribuir para a disseminação de desinformação e como são refletidos dentro da Indústria Criativa. 


Nas últimas semanas, o avanço frenético no desenvolvimento das Inteligências Artificiais resultou em imagens e cenários intrigantes, como a polêmica foto do Papa Francisco em um vestuário que normalmente não associamos a um líder religioso; ou, então, o surgimento de apresentadoras de telejornais totalmente geradas através da IA. Isso causa sérias dúvidas sobre quais são os reflexos dessas tecnologias na sociedade, e se elas realmente representam progresso. A verdade é que respostas para essas questões ainda não existem. Talvez por essa mesma razão, uma série de empresas de tecnologia e personalidades, incluindo o controverso bilionário Elon Musk, tenham assinado uma carta aberta à Organização das Nações Unidas (ONU) pedindo uma pausa no desenvolvimento da Inteligência Artificial


Esse movimento, no entanto, parece contraditório, uma vez que grande parte desse núcleo de companhias e investidores é responsável pelo financiamento desses avanços tecnológicos. Por isso, para tentarmos entender a complexidade desse cenário tão novo, repleto de perguntas – muitas delas até então retóricas –, precisamos compreender o que de fato são as Inteligências Artificiais. 


Decifrando a Inteligência Artificial – o que é isso? 


Muito ainda se discute sobre o conceito de Inteligência Artificial, se ela é uma ferramenta que pensa como o ser humano ou que apenas atua como tal. Contudo, ao contrário do que parece, apesar das recentes discussões, essa tecnologia vem sendo desenvolvida há mais de 50 anos. Quem aí conhece o caso do enxadrista Garry Kasparov, que foi derrotado por um computador em uma partida de xadrez? O memorável supercomputador da IBM, Deep Blue, é só um dos tipos de Inteligência Artificial que foram desenvolvidos ao longo dos anos. De modo geral, a IA é classificada em três tipos: Inteligência Artificial Limitada, Inteligência Artificial Geral e, por fim, Superinteligência Artificial. 


A primeira delas, a Limitada, diz respeito a um tipo de IA que não se molda aos requisitos de determinado sistema. Sua função é focar e dedicar-se em uma única tarefa complexa. Dentro da IA Limitada, existem duas subcategorias: máquinas reativas e memória limitada. O supercomputador que venceu o campão de xadrez é um exemplo de máquina reativa. E, no nosso dia a dia, os melhores exemplos de IA de memória limitada são os assistentes virtuais, como Alexa e Siri, ou até mesmo serviços de streaming, uma vez que armazenam mais informações do que as máquinas reativas, conseguindo, assim, gerar um banco de dados a partir do histórico de interação com o usuário. 


O segundo tipo de IA, a Geral, é considerado mais potente. Isso porque tem a capacidade de pensar e aprender. Dessa forma, consegue se adaptar a diferentes cenários, e isso faz com que exerça uma atividade muito próxima a da mente humana.


E, por fim, o terceiro tipo de Inteligência Artificial – a superinteligência – é a mais “completa” de todas. Esse tipo de tecnologia, que estamos vendo ser desenvolvida desenfreadamente, pode replicar e até superar a inteligência humana por ser um sistema de alto rendimento. Esse é o tipo de tecnologia retratado em “O Exterminador do Futuro”, de 1984.. 


A Inteligência Artificial é o fim das artes ? 


Sempre que uma inovação tecnológica surge, levantam-se inúmeros receios e pensamentos apocalíticos sobre qual será o seu impacto na humanidade. “As máquinas vão substituir o homem? Minha profissão vai deixar de existir? Até quando ainda teremos controle sobre as máquinas?” São essas algumas das principais perguntas que norteiam esse temor. E, como a Inteligência Artificial está reconfigurando cada vez mais diferentes áreas, com o campo artístico não seria diferente. 


Contudo, enquanto alguns veem a IA como uma ameaça à originalidade e autenticidade da arte, outros argumentam que a tecnologia pode ampliar e potencializar a criatividade humana, oferecendo novas possibilidades para a expressão artística. “Vejo a utilização da Inteligência Artificial em projetos de artes visuais como parte do processo. Todo artista possui seu método de trabalho, algo que não é estático e está sempre em transformação, por isso, percebo as IAs como ferramentas de auxílio nesse desenvolvimento”, diz o pesquisador e designer UX Carlos Donaduzzi


Carlos Donaduzzi: “As pessoas já se impressionaram com macacos, porcos e elefantes pintando quadros, acho que agora é o momento de elas se impressionarem com algoritmos e robôs artistas” 
(Foto: arquivo pessoal) 



Carlos é mestre e doutor em artes visuais, e está em dois Grupos de Pesquisa (GP) com foco em arte e tecnologia nas áreas de fotografia e vídeo: GP Processos Híbridos na Arte Contemporânea, vinculado à Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e GP Arte e Tecnologia, do laboratório de pesquisa Labart, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). 


Quando falamos da relação entre arte e IA, questões sobre a propriedade intelectual são imediatamente levantadas, uma vez que é difícil definir quem é o criador da obra gerada por uma máquina. Em março, o artista alemão Boris Eldagsen inaugurou uma grande polêmica ao vencer o Sony World Photography Awards, na categoria Melhor Fotografia. Detalhe: a obra foi gerada inteiramente através de Inteligência Artificial. 


“Eu me inscrevi para ver se as competições estão preparadas para as imagens geradas por Inteligência Artificial. E não estão”, afirmou Boris Eldagsen ao recusar publicamente o prêmio 
(Foto: arquivo pessoal) 



Boris foi acusado de ter “mentido deliberadamente”. As críticas pesaram e, mesmo alegando ter se mantido transparente sobre a origem da fotografia, o artista acabou recusando o prêmio. Mas por que o choque, já que – segundo ele – o processo de produção da foto nunca foi escondido? Em entrevista ao The Guardian, os organizadores do prêmio disseram que, no momento de submeter a obra, o artista a registrou como uma produção construída com auxílio da IA, e não gerada inteiramente por ela. E, segundo as regras da competição, a categoria Criativa aceita diferentes abordagens experimentais para a criação de imagens, desde cianótipos e radiografias até práticas digitais avançadas. “Após nossa correspondência com Boris e as garantias de que ele forneceu, sentimos que sua inscrição preenchia os critérios para essa categoria e apoiamos sua participação”, afirmaram ao jornal britânico. 


O debate acerca dos direitos autorais de uma obra é complexo, segundo o designer Carlos Donaduzzi. “Ela ou isso é a autora das obras? Ou a equipe que desenvolveu o projeto é que deve levar os créditos? Me parece que é algo muito mais coletivo do que individual, assim como qualquer imagem gerada por alguma plataforma ou app”, indaga Carlos ao usar a AI-DA – primeiro robô artista com feições humanas a ser desenvolvido –, para exemplificar a discussão. 


No ano passado, AI-DA fez uma exposição individual durante a Bienal de Veneza, no Concilio Europeu Dell’Arte 
(Foto: arquivo pessoal) 



AI-DA cria pinturas e esculturas através de ferramentas como câmeras instaladas em seus olhos, seus braços robóticos, e, é claro, os algoritmos. E se modelos como ela se difundissem, e se os mecanismos da IA se tornassem cada vez mais autossuficientes, que espaços sobram para a originalidade e os processos criativos? 


Para o pesquisador, o que o artista ser humano produz não pode ser necessariamente dito como original. “Muitas vezes, essa produção é um remontar de referências e pequenas cópias (o que eu acredito que não diminui a importância de um trabalho em arte). E o que as IAs fazem é quase a mesma coisa, porém de maneira automatizada”, acrescenta. 


Nesse mesmo sentido, o professor da Escola de Humanidades da Unisinos Celso Cândido Azambuja, que ministra várias disciplinas sobre ética, retoma o princípio do debate sobre o que de fato é ser original e autônomo: “Não existe um indivíduo apartado da sociedade. Então, todas as decisões que tomamos foram anteriormente mediadas por livros que lemos, por influência familiar, formação acadêmica, entre outros. Ou seja, a nossa decisão ´autônoma´ é sempre mediada por relações que construímos ao longo da vida”, explica. 


Um exemplo de como a parceria entre homem e máquina pode dar (muito) certo é o da marca brasiliense Airtificial. Fundada pelos designers Igor Borges, Max Rocha e Pedro Hermano, a fashion label fez seu primeiro lançamento em janeiro deste ano. Desde o começo, o desejo dos artistas era contar histórias que conectassem tecnologia e natureza em cenários alternativos dentro de uma estética futurista. Como uma série de livros, o storytelling da Airtificial consiste em apresentar ao público um novo capítulo da história a cada coleção lançada. 


“A Inteligência Artificial conseguiu materializar tudo o que a gente queria”, afirma Igor 
(Foto: Instagram @Airtificial) 



“Não precisamos mais de uma superprodução ou superlocação para conseguir um produto bom”, explica Pedro. Mesmo com uma bagagem extensa em fotografia, os designers viram na Inteligência Artificial um “motor para o seu negócio”, especialmente por serem uma marca muito nova e pequena dentro de uma indústria que exige produção diariamente. 


Se a forma de se produzir arte está em constante transformação, a maneira como a consumimos também não estaria? “Estamos no meio da onda e não sabemos para onde ela vai. Há menos de um ano, pessoas do mundo da arte achavam que as NFTs (token não fungível – tradução literal da sigla em inglês non-fungible token –, que funciona como um certificado de autenticidade digital e que não pode ser copiado ou replicado) iriam revolucionar a maneira de produzir, expor e vender arte, mas passado esse período, quase ninguém mais fala sobre isso”, acredita Carlos Donaduzzi. 


Ética e transparência: pilares fundamentais para o uso da IA 


Dentro dessa discussão entre direitos autorais, autenticidade e processos criativos, é extremamente importante reforçar os compromissos éticos que a Inteligência Artificial assume – ou pelo menos deveria assumir – ao produzir e reproduzir conteúdo. Como a foto manipulada do Papa Francisco, mencionada no início da reportagem, ou então a proliferação dos deep fakes, a credibilidade daquilo que vemos na internet é cada vez mais questionável, e, assim, expressões populares como “uma foto vale mais que mil palavras” perdem a validade e tornam-se vagas. 


Imagem criada através da plataforma Midjourney a partir da descrição dada por Eliot Higgins, fundador e diretor criativo do coletivo investigativo Bellingcat. 
(Foto: Reprodução/Twitter)



A fotografia como documento é uma discussão extensa e cada vez mais ampla. “Já vimos casos recentes no Brasil onde pessoas foram presas injustamente após serem ‘reconhecidas’ em fotos de banco de dados policiais”, relembra Carlos. Além disso, a disseminação de fakes e desinformação apoiadas em imagens mostram que as pessoas podem ser facilmente manipuladas e que acabam por acreditar naquilo que é conveniente. “As imagens do Papa geradas por IA ativaram outro alerta. E, possivelmente, uma saída para essa falta de confiabilidade seja cobrar as próprias empresas que fornecem esse serviço de gerar imagens uma opção de checagem”, complementa o designer. 


Para a jornalista Iara Lemos, especialista em relações governamentais, direitos humanos, política e Inteligência Artificial, a maior urgência para o equilíbrio e uso sensato das IAs é uma regulamentação pensada e aplicada pelo governo. Em seu recente artigo publicado sobre as discussões acerca da IA, Iara diz que “o Brasil ainda está tão atrasado no que diz respeito ao uso da Inteligência Artificial, que nem mesmo há legislação que traga balizas ao tema”. 


“A humanidade ainda não é capaz de atuar eticamente como deveria sem que haja obrigatoriedade de cumprimento de legislação”, acredita Iara Lemos 
(Foto: Arquivo pessoal) 



Nesta semana, a votação para o projeto de lei das fake news na Câmara de Deputados foi adiada novamente. O objetivo do PL 2630/20 – como foi registrado – é estabelecer normas relativas à transparência de redes sociais e de serviços de mensagens, sobretudo no que diz respeito à responsabilidade dos provedores, como o Google, por exemplo, pelo combate à desinformação, bem como estabelecer sanções para o descumprimento da lei. De acordo com Iara, esse é o início de uma ramificação extremamente necessária para que a Inteligência Artificial no Brasil seja regulamentada. 


“Temos também o Marco da Inteligência Artificial, que igualmente está engavetado há mais de um ano”, salienta a jornalista. De maneira geral, a proposta do marco estabelece que o uso da IA fundamenta-se no respeito aos direitos humanos e aos valores democráticos, a igualdade, a não discriminação, a pluralidade, a livre iniciativa e a privacidade de dados. 


A aprovação do PL citado acima tem causado também grandes discussões acerca do futuro do jornalismo. Entre um boato e outro, criou-se a ideia de que o Projeto de Lei contribuiria para a censura, o que não é verdade. A própria Associação Brasileira de Imprensa entende o PL como um “importante instrumento no combate à desinformação”. 


No que diz respeito ao futuro do jornalismo na era da Inteligência Artificial, Iara entende que o profissional precisa ser amplo e, mais do que nunca, saber trabalhar com análise de dados. “A IA não vai acabar com o jornalismo, assim como não vai acabar com a medicina. Não vai ser um robô que realizará cirurgias, ainda que esteja a máquina atuando ali. Ela depende de uma inteligência humana para que o trabalho possa ser realizado”, complementa. 


As proporções que a Inteligência Artificial está tomando – e ainda tomará – já estão remodelando a Indústria Criativa. Apesar do desenvolvimento constante nos apresentar cenários inusitados, já conseguimos presumir alguns de seus impactos. Lutar contra o avanço dessas tecnologias é inútil, é perder tempo, isso porque é impossível interromper pesquisas e investimentos para manter-se estagnado.


O maior desafio que essa e as próximas gerações terão que encarar é estimular e desenvolver habilidades essencialmente humanas, comportamentais, e, claro, estimular cada vez mais o seu senso crítico. Seja na moda, no design, na música, literatura ou no jornalismo, a IA estará presente, isso é um fato. O que precisamos é estar abertos às novas formas de sermos criativos.

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