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“A arte é um reflexo da sociedade”
"O cineasta e professor do CRAV Gilson Vargas conversou com o Mescla sobre seu longa ‘A Colmeia’, a realidade do setor cultural hoje, e como jovens realizadores podem contribuir para sua retomada "
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Pós-Graduado em Comunicação pela PUCRS, Gilson Vargas tem uma carreira de quase 30 anos como cineasta, na qual contabiliza a realização de séries, curtas, médias e longas-metragens, assim como peças de teatro. Ele compõe o corpo docente da Unisinos desde 2004, professor de direção e roteiro do curso de Realização Audiovisual. É sócio da produtora Pata Negra, que produziu o longa  ‘A Colmeia’, filme dirigido por ele.  


‘A Colmeia’ ganha o cenário da primeira metade do século 20, no sul do Brasil, onde um grupo de imigrantes alemães vivem isolados. Tentando se manter invisíveis, eles lidam com fatores que os colocam uns contra os outros, entre eles a fome, medo do mundo externo a seu grupo e o embate entre gerações. 


A obra estreou mundialmente no Festival PÖFF 23 – Black Nights International Film Festival, na Estônia, dentro da mostra Rebels With a Cause e ganhou o prêmio de “Melhor Longa-Metragem Estrangeiro” no Festival Internacional de Zaragoza, na Espanha. Estreando no Brasil na mostra Novos Realizadores do 52º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, fazendo um circuito até o Rio Grande do Sul, onde foi o destaque da presença craviana no 49º Festival de Cinema de Gramado levando “Melhor Direção”, “Melhor Ator”, “Melhor Fotografia”, “Melhor Direção de Arte” e “Melhor Desenho de Som”, sendo o maior premiado da noite na categoria Longa-Metragens Gaúchos. 


O bate-papo aconteceu pelo Teams, cedo pela manhã, com o professor falando de Garopaba, SC, onde possui residência. Durante a conversa, o cineasta falou sobre a produção e recepção do filme, bem como sobre os planos para o futuro da obra e o cenário do setor cultural no país, que mesmo antes da pandemia já sofria as consequências da atual gestão política.


Qual foi a sua inspiração para o filme? 


Até mesmo pela minha atividade junto à Unisinos de São Leopoldo, comecei a me aproximar muito do Vale dos Sinos e do Vale do Caí e me interessar por essas questões que tem haver com a colonização dessa região, do Brasil. Sempre tive um interesse pela história do Brasil, na sua diversidade e nas suas adversidades também, mas comecei a ter um interesse mais especial por essa questão da colonização alemã, principalmente. Eu comecei a ler a respeito desse tema e isso começou a me suscitar ideias para reinventar essa realidade, olhar para ela com uma ênfase mais ficcional. 


‘A Colmeia’ é um filme que tem como plano de fundo a questão da presença do colonizador, digamos assim, sendo que não é o da “primeira leva” do século 19, mas, sim, já no século 20, durante o período do final da 2ª Grande Guerra. Isso é o plano de fundo do filme, porque o filme não é um filme histórico, não é um filme que tem o compromisso com a realidade histórica, é muito mais um filme de ficção, um filme de gênero – que inclusive flerta com o gênero do terror, por exemplo, que usa elementos do cinema de terror. 


Uma das coisas que está presente no filme é o tema da intolerância, da falta de empatia, de alteridade, do medo do outro, das fraturas emocionais dentro das famílias, da polarização da sociedade, isso está representado dentro do filme. Então, é um filme que não só mistura gêneros como também evoca e mistura temáticas que acompanharam a construção da sociedade brasileira desde sempre, mas que agora, nesse momento em que a gente vive, ganham áreas – infelizmente – muito drásticas. Então, quando eu falo que é um filme que flerta com o terror, não é um terror sobrenatural, é muito mais um terror sobre como nós mesmos, seres humanos, podemos nos tornar pessoas terríveis quando estamos nos sentindo oprimidos e, muitas vezes, aquele que se sente oprimido também se torna opressor, pois não sabe lidar com essas forças que estão nesse jogo entre as pessoas. 

‘A Colmeia’ flerta com o gênero terror a partir da natureza humana
(Imagem: Reprodução)


Parece ser um filme com mais interpretações do que as que estão diretamente na tela…


Eu acho que uma das coisas mais interessantes e instigantes para nós, realizadores e realizadoras de cinema, quando a gente tem a oportunidade de participar de todas as etapas, ou seja, construir um projeto, uma ideia, escrever um roteiro, dirigir e depois acompanhar a fase de finalização, incluindo a montagem – uma das coisas que eu acho mais interessante de perseguir é a possibilidade da narrativa ter mais de uma leitura, camadas de entendimento que estão ali sobrepostas. 


Isso é um grande desafio. É um grande desafio conseguir se comunicar com uma audiência mais ampla e, ao mesmo tempo, não perder questões de fundo que estão ali entranhadas na própria temática. Quem traz esse julgamento, se isso funciona ou não, é o próprio público, a crítica, e a gente nunca tem certeza se conseguimos articular essas possíveis camadas de leitura


Como foi montar uma equipe para realizar esse tipo de projeto, atrás e na frente das câmeras? 


Eu procuro montar as equipes sempre com pessoas que eu tenho algum vínculo, não só de admiração profissional, não só de confiança artística e técnica, mas, também, onde se constroem afetos. Então as pessoas que eu trabalho são pessoas muito próximas de mim, que dividem pensamentos de mundo e que debatem comigo também, discordam muitas vezes, o que é muito importante. Porque fazer um filme é dar materialidade na tela para uma ideia, construir uma ideia através de imagens e sons uma ideia. Uma ideia de mundo. Eu acho muito bom poder compartilhar essas ideias de mundo, por meio da ficção, com pessoas que, além das suas competências profissionais, tem uma compatibilidade humana que vai além disso.


Os filmes demoram muito tempo para serem feitos, em qualquer lugar do mundo, não é só uma realidade brasileira, portanto, é um casamento que tem ali e ele precisa ser duradouro e harmonioso. Não que de vez em quando não vá haver turbulências, é claro que tem, mas eu sinto que essa jornada de fazer um filme com pessoas que eu tenho algum tipo de vínculo além do profissional mais prazerosa, mais produtiva e com mais longevidade. Vai além. 


O elenco depende muito do roteiro. Aí eu acho que tem uma coisa, também, de encontrar novas pessoas, de renovar os vínculos com os novos personagens que surgem a cada história através dos novos atores e atrizes que surgem para cada filme. Ainda assim, é importante para mim que eu tenha uma admiração pessoal, que eu acredite naquela pessoa como parceiro e parceira de trabalho. Não basta atuar bem, tem que atuar bem, mas também tem que ser uma boa companheira e bom companheiro de trabalho. 


O elenco de ‘A Colmeia’ é um elenco incrível. Todas as pessoas que estão ali são pessoas com quem eu tive muita conversa antes de fechar o convite. Eu não deleguei a seleção desse elenco, não teve um Produtor de Elenco, um Assistente de Direção ou alguém que fez essa intermediação por mim. Isso foi muito importante para a coesão, para a harmonia, para a gente ter uma vivência, que foi muito intensa, de fazer esse filme – a gente foi, realmente, muito imersivo. 


Os atores tiveram que fazer uma grande entrega para construir esses personagens, que são tão distantes deles, porque um personagem da ‘Colmeia’ não vai pegar uma caneta como a gente pega, mas sim como se tivesse pegando o cabo de uma enxada. Não vão falar como a gente fala, com meu sotaque de Porto Alegre, ele vai ter outra dicção, outro vocabulário – ele vai ter outro pensamento. Então, toda essa construção cultural do personagem, dentro da ficção, teve que ser feita através de uma grande imersão dos atores. Desafios que mexeram com a própria identidade deles como, por exemplo, o fato de todos terem que cortar os cabelos, porque, no filme,  há uma infestação de piolhos. Principalmente, para as mulheres com os cabelos longos e bem cuidados, ter que cortar rente à cabeça e ao couro cabeludo, com aqueles caminho de rato, é um despojamento muito grande. E isso foi possível porque as pessoas tiveram uma compreensão do que era o trabalho, das exigências do trabalho como obra artística, e isso só é possível de ser feito quando a gente tem pessoas que são muito compromissadas e muito parceiras. 


O filme estreou em festivais, primeiro internacionais e depois nacionais, como foi a recepção dele, tanto pelo público quanto pela crítica? 


O filme estreou em um Festival que é bem importante no cenário de festivais europeus que a gente, aqui no Brasil, não está tão habituado. Estamos mais habituados a ouvir falar de ‘Berlim’, ‘Cannes’, ‘Sundance’, nos Estados Unidos, Festival de Veneza… Mas existe, claro, todo um outro circuito de festivais muito grandes e muito importantes, que são festivais emergentes e que estão ganhando força no cenário dos festivais. Um deles é o “Black Nights” ou PÖFF, que é o Festival que acontece em Tallinn, na Estônia. Um Festival ali daquela região que faz convergir, não só o cinema do mundo inteiro, mas muito do cinema que é feito na região do Leste Europeu. 


Foi muito interessante poder estrear o filme lá, para uma platéia muito diferente da platéia brasileira. Eu tenho o costume de viajar para muitos festivais em vários lugares, mas eu achei especialmente diferente essa experiência de Tallinn, porque o filme tem alguns códigos que talvez nós, brasileiros, pela questão da contextualização da colonização alemã, tenhamos uma visão, enquanto que lá, muito possivelmente, eles tenham uma outra visão. Não só isso, acho que existe um imaginário do europeu, principalmente do europeu que tem menos contato com a realidade brasileira, de que é tudo muita selva –  apesar de que hoje o imaginário é o da selva sendo destruída, nesse caso não é um imaginário imaginativo, é um imaginário real, estamos sofrendo com isso infelizmente -, mas, também, aquele imaginário do Carnaval, do sol, do ambiente tropical, até mesmo de um tipo físico que é mais vinculado com as nossas origens ou dos nativos aqui, antes da invenção do Brasil, ou dos afrodescendentes. Então, um filme com pessoas de uma imagem muito mais europeia, que é a questão do colonizador, que veio para cá, inclusive, em um projeto cujo, um dos vieses era fazer um processo de branqueamento da sociedade, o que é algo bastante forte para se discutir e que foi muito drástico com uma perspectiva, digamos assim, de desumanidade. Levar um filme assim causa um certo estranhamento, o que foi muito positivo, porque gerou muitas discussões e debates, o que foi muito bom. 

O longa foca em um grupo de imigrantes alemães
(Imagem: Reprodução)


E, aí, o filme veio vindo, né? Porque ele estreou na Estônia e depois teve as exibições no Festival de Zaragoza, na Espanha, que, de alguma forma, tem um pouco mais de familiaridade com questões mais recorrentes, digamos assim, diálogo Brasil-Espanha. O filme ganhou, nesse Festival, o prêmio de “Melhor Longa Estrangeiro”, o que nos deixou muito felizes, portanto, foi muito bem recebido, pelo menos pelo júri e, em seguida, ele estreia no Brasil, no Festival de Brasília, um Festival super tradicional. Depois ele teve outras exibições: Festival Brasileiro de Miami, de Nova York… A chegada em Gramado, para a gente, foi muito importante, porque foi uma espécie de aterrissar em casa, um Festival que acontece muito próximo da gente, um Festival que é importante para a nossa emoção de ter um vínculo afetivo. Então, fazer esse circuito, de tão distante para tão próximo, foi o melhor circuito que a gente pôde fazer e ficamos muito felizes que foi um circuito tão bem sucedido.


Quanto a recepção da crítica, já existem algumas críticas que estão disponíveis para as pessoas lerem, a gente ficou feliz com o entendimento que a crítica teve sobre o que o filme quis dizer. Acho que é muito importante quando os nossos colegas críticos compreendem o que a gente quer dizer e isso é bem sucedido, mas o que mais a gente quer e tem expectativa, que ainda está para acontecer, é a estreia do filme comercialmente falando, para que o amplo público possa assistir. Eu fico muito curioso, como diretor, para saber o que as pessoas vão achar de fato – a audiência de fato. 


Por trás das câmeras e além dos personagens


A história sobre o grupo de imigrantes alemães se derivou de um sketch teatral de Diones Camargo, um dos roteiristas do longa, que foi dirigido por Gilson Vargas no 6º FestiPOA Literária no Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul (MACRS). Parte das etapas de produção de ‘A Colmeia’ incluíram a busca por uma casa original do século 19 para autenticar o cenário, assim como, uma música regravada em alemão feita para o filme. 

O cenário principal de ‘A Colmeia’ é uma casa original do século 19
(Imagem: Reprodução)


Abaixo, conheça os nomes por trás da realização do longa-metragem ‘A Colmeia’:


Equipe de produção

Direção: Gilson Vargas 

Roteiro: Diones Camargo, Gilson Vargas, Matheus Borges

Produção executiva: Gabriela Bervian, Gilson Vargas, Francisco Caselani

Direção de produção: Deise Chagas, Eduarda Nedel, Gabriela Bervian

Direção de fotografia: Bruno Polidoro

Montagem: Gabriela Bervian

Direção de arte: Gilka Vargas, Iara Noemi

Som direto: Higor Rodrigues e Tiago Meyer

Desenho de Som: Gabriela Bervian

Trilha sonora: Leo Henkin


Na frente das câmeras, a obra contou com o envolvimento dos atores e atrizes em se imergirem nas realidades dos personagens de época. Os artistas realizaram atividades em campos de cultivo e aulas de alemão para compor os papéis, eles também contribuíram com a escolha de itens usados dentro da narrativa durante as gravações.

   

Os atores e atrizes fizeram um processo de imersão para a construção dos personagens
(Imagem: Reprodução)


Elenco completo (artista e personagem)


Andressa Matos como Mayla

Janaina Pelizzon como Bertha

João Pedro Prates como Christoffer

Martina Fröhlich como Uli

Rafael Franskowiak como Werner

Renata de Lélis como Lila

Samuel Reginatto como Asper

Thais Petzhold como Erika


Com a participação de

Alexandre Vargas como Policial

Danny Gris como Médico

Elison Couto como Açoitador

Indianara Vãn Kafej como Menina na Gruta

Iracema Nascimento como Mulher na Gruta

Marcio Reolon como Homem da Cidade

Marcos Guarani como Fugitivo


“Nós estamos resistindo e resistiremos sempre”


Falando sobre essa estreia comercial do longa… Ele foi concluído no final de 2019, a pandemia de Covid-19 afetou, de alguma maneira, o cronograma pré-planejado para o filme? 


É… Na verdade, a gente tem duas questões bem importantes. Uma delas é que, infelizmente, os projetos que estão vinculados à Agência Nacional de Cinema estão muito lentos em termos de liberação de recursos. ‘A Colmeia’ ganhou um edital de distribuição, a nossa distribuidora é a Lança-Filmes, que é uma distribuidora muito interessante, parceira nossa aqui no Rio Grande do Sul, e esse recurso não nos foi liberado até hoje. É um recurso do Fundo Setorial Audiovisual, justamente para distribuir as obras brasileiras em todo Brasil, em salas físicas e nos streamings ou em qualquer tipo de suporte possível. 


Somado a isso, a gente teve a pandemia. Então, o nosso projeto inicial que era estrear o filme em março de 2020 acabou se protelando e, até agora, a gente está aguardando, tanto a liberação do recurso quanto um momento mais oportuno, porque queremos colocar em salas também, é o objetivo. Não temos certeza se nesse momento, essa nova realidade que a gente está atravessando, vai fazer com que o filme vá, de fato, para as salas de cinema, mas, evidentemente, de alguma forma ele vai estrear, independente das salas ou não, ele vai estar nos streamings, disponível para o público quando esse recurso for liberado pela Ancine, e a gente está trabalhando para isso. 


Vocês já têm alguma ideia de quando isso vai acontecer, alguma base com a qual consigam trabalhar o próximo passo do filme?  


Nós temos um planejamento, uma ideia, de como o filme vai ser lançado, isso fica muito a cargo da distribuidora, mas, claro, numa conversa conosco. Eu sou sócio de uma produtora que se chama Pata Negra, que é a produtora que produziu o filme. Os produtores-executivos, que são o Francisco Caselani, eu também sou produtor executivo e a Gabriela Bervian, a gente discute as estratégias junto com a Daniela Menegotto, que é da distribuidora, mas o cenário está muito volátil, porque as questões da pandemia, as questões econômicas, fazem com que a gente tenha que ter um planejamento que seja flexível. 


A nossa ideia, nosso desejo, é lançar o filme até o final do ano, mas, de novo, vai depender, também, de que esses recursos sejam liberados. A nossa ideia é para 2021 ainda, mas isso não é algo que, nesse momento, eu possa garantir por depender de terceiros.  


Como cineasta, ainda falando sobre a projeção futura do filme, mas entrando, também, na questão do setor cultural, do setor de filmes como um todo, como é ver, no momento em que estamos, às salas de cinema voltando?


Eu acho que a arte como um todo – a produção artística dentro do ambiente do tempo-espaço em que ela está inserida – ela não é só um reflexo do que se vive, mas também um remédio para o que se vive. Então, a arte reflete o sentimento de época, aquilo que a gente vem atravessando, que não é só a questão da pandemia, são as questões que afligem, mas não só reflete como, também, oferece lugares de conforto, reflexão e amparo para esse próprio momento. 


Ver os filmes, ou o teatro, ou os shows de música, ou as exposições de arte voltando aos poucos, não só é um reflexo que nós estamos resistindo, e resistiremos sempre, como é, também, a possibilidade de a gente ter esse convívio, digamos assim, com uma dimensão que é não é só da sobrevivência biológica, mas da sobrevivência das nossas consciências, dos nossos sonhos e dos nossos desejos. Ou, pelo menos, que seja o conforto de um momento em que eu tenho um entretenimento, uma janela para um espaço que é outro, de ficção, onde eu possa repousar um pouco meus pensamentos. Eu acho que a arte, como algo que mexe com o nosso intangível, nossas emoções e sentimentos, nesse momento, ela é um dos grandes remédios que a gente pode ter. 


Primeira coisa é todo mundo estar vacinado e imunizado, até a terceira dose, seja o que for, para poder estar ativo com aquilo que a ciência preconiza como correto, mas sem deixar de lado essa subjetividade que a arte nos traz e que é, também, uma resposta para as nossas inquietações.  


E, com essa visão e como alguém do meio, você diria que o setor cultural já passou pelo “pior momento” que poderia ter se originado da pandemia, ou que tem muito pela frente ainda?


A gente teve muitos momentos nessa narrativa toda da Covid entrando nas nossas vidas. Primeiramente, não tínhamos ideia da dimensão disso, o que era isso, e nós tivemos uma certa ilusão – pelo menos eu tenho essa sensação, mas compartilho essa sensação com vários colegas – de que a pandemia, por mais aterradora que fosse, parecia que ela causava uma espécie de possibilidade de reacordo entre as pessoas que se viam em conflito por visões de mundo muito discrepantes. Como se nós tivéssemos todos um grande inimigo comum, como acontece nos filmes, às vezes, e tivéssemos que nos unir contra esse inimigo comum. Acho que houve uma certa ilusão disso. 


Então, dentro de todo o desconforto que era do início de uma pandemia, parecia haver uma sinalização de uma transformação social, porém, foi só uma impressão e o que aconteceu foi o contrário, vimos as pessoas mais divididas ainda. Até porque muitas pessoas se valeram da pandemia para benefícios próprios, inclusive econômicos, o que é muito grave, muito sério e muito desumano. Me parece que essas diferenças aumentaram mais ainda, ficaram mais evidentes, basta a gente ver a CPI da Covid para acompanhar essa infeliz realidade – que no Brasil tem a sua expressão mais violenta.


Do ponto de vista da produção cultural, a gente tem não só a pandemia, mas o desaparelhamento dos instrumentos, o enfraquecimento dos instrumentos de fomento, como também uma guerra subjetiva do que vale ser arte, a questão da censura, mesmo que velada e, às vezes, nem tão velada no Brasil, o que tem haver com alinhamentos ideológicos que se contrapõem dentro do espectro da nossa sociedade como um todo.     


A pandemia, a gente está entendendo já o que ela é, não sabemos a longevidade de uma imunização da vacina, não sabemos se novas variações vão surgir ou não, não sabemos se todos os anos teremos que fazer essa vacina novamente, mas parece que sim. Temos um cenário, pelo menos é o que a ciência mostra, de possíveis outras pandemias, até porque o homem, no desgaste que provoca a natureza, acaba recebendo esse tipo de resposta da própria natureza.Tudo isso pode trazer, de novo, instabilidades, mas dessa pandemia, me parece, que o setor cultural conseguiu atravessar a pior fase. 


A gente precisa, muito mais agora, é reconquistar os nossos espaços de produção artístico-cultural através do resgate das nossas atividades e da reorganização do nosso setor como um todo. E de uma conversa. Estipular uma conversa com o setor público, o setor privado, repactuar e renovar alguns laços, refazer alguns caminhos e fazer alguns descartes de coisas que não funcionam, inclusive, essas coisas que estão vinculadas as nossas escolhas eleitorais, quem a gente coloca para trabalhar para a sociedade brasileira nos poderes que a gente elege. 


Você gostaria de acrescentar mais alguma coisa?


Deixar uma última palavra dizendo o seguinte: eu sou realizador de cinema, de audiovisual, já fazem quase 30 anos, comecei bem cedo. Eu fui aluno de jornalismo, me formei em jornalismo e fui migrando para o audiovisual, me apaixonando por esse setor, mas eu dou aula também, então eu sou um realizador que dá aula de cinema. Eu adoro dar aula de cinema e é através das aulas de cinema que eu vejo uma luz, a renovação. Os jovens realizadores e realizadoras e, claro, os jovens jornalistas e todas as pessoas que estão na área da comunicação ou na área da produção cultural, é muito importante que essa juventude não só se preserve dentro de nós, que já não somos tão jovens, mas que, principalmente, não deixe os próprios jovens, porque eu acho que é muito difícil, hoje, eu acredito, ser alguém que está chegando no mundo do trabalho, no mundo da sua independência, da sua individuação, da sua afirmação no mundo, com o mundo como ele está. 


Então, a palavra que eu digo é: a gente precisa não soltar a mão de ninguém e por muito mais tempo. Esse jargão já está antigo, ele já começou a alguns anos, mas ele ainda está valendo, valendo cada vez mais, na verdade. Eu digo aos colegas, que não basta ser diferente, tem que fazer a diferença e essa diferença se faz no dia-a-dia, nas relações que a gente tem, não só no trabalho, relações pessoais, enfim, em uma relação mais ética com o mundo, seja onde estivermos. Acho que é um pouco essa a missão de nós, professores, dentro de uma sala de aula, mas isso depende muito, sobretudo, da disponibilidade dos jovens de querer fazer esse diálogo e levar esse bastão adiante. É isso que eu desejo, que esse bastão da resistência e da lucidez  seja levado adiante pelas pessoas que estão chegando. 

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