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“Ninguém quase cobre Câmara de Vereadores e tem muita coisa importante acontecendo lá!”
"Para a jornalista Naira Hofmeister, o jornalismo local é uma forma de reconectar o cidadão com a democracia"
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Em 2020, mais do que nunca, o jornalismo local terá papel importante no Brasil, seja por causa das eleições municipais, pela pandemia causada pelo novo coronavírus ou, até mesmo, pelo cenário democrático atual no país. Mas e o jornalismo de soluções, tem alguma relação com o momento atual? Ou melhor, tem alguma relação com o jornalismo local? Tá, mas por que o jornalismo local é tão importante?

Naira Hofmeister (Foto: Arquivo Pessoal)

Pensando em responder essas perguntas, nós do Portal Mescla conversamos com a jornalista e chefe de reportagem do Grupo Matinal, Naira Hofmeister.

Formada em Jornalismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Naira atua como freelancer desde 2006 e já escreveu para mais de 30 veículos diferentes, no Brasil e no mundo, como a Agência Pública, El País, The Intercept e Mongabay.

O trabalho da jornalista já foi reconhecido com o Prêmio de Direitos Humanos de Jornalismo, o Prêmio ARI, da Associação Riograndense de Imprensa (ARI), e o Prêmio de Jornalismo da Justiça Eleitoral do Rio Grande do Sul.

Mescla: 2020 é ano de eleições municipais, qual a importância do jornalismo local neste cenário?

Naira Hofmeister: Eu acho que o jornalismo local é necessário em qualquer momento, não apenas em momentos eleitorais. Obviamente, em um período eleitoral esse exercício de fiscalização da imprensa se torne mais visível. Porto Alegre tem exemplos maravilhosos de exercício de cidadania desvinculados do período eleitoral, como o Orçamento Participativo ou dos Conselhos Municipais. Temos muitos conselhos municipais super atuantes aqui na cidade, vários deles pioneiros no Brasil. O plano diretor, pelo qual precisa passar todas as aprovações de edificações, grandes projetos, o conselho ambiental são exemplos de iniciativas cidadãs que ampliam esse horizonte de participação além do período eleitoral. Então, acho que nós temos uma condição interessante de fazer jornalismo local, justamente por isso, porque eu acho que já existe um caldo cultural de gente atenta e interessada no que acontece em sua esquina. E esse é o grande valor do jornalismo local, o fato de ser um jornalismo que está atento a tudo que está acontecendo em volta. Isso não se resume apenas às eleições. É muito difícil que um jornal em nível nacional consiga olhar detalhadamente para o que acontece aqui em nossa cidade. Eu acho que o que temos em 2020, que é um ano interessante para pensar o jornalismo local, é um fato que temos vivido no Brasil um lapso democrático muito grande, fundamentalmente pelas atitudes do presidente Jair Bolsonaro. Esse estímulo a seguidores que entendem a vida como uma necessidade de autoritarismo, que acham que há mais valor ou acham que esse autoritarismo podem ser um meio para justificar uma finalidade de melhoria de vida. Mas não é apenas ele (presidente), temos outros exemplos de personagens públicos e de muitos cidadãos, infelizmente, que compram essa ideia de que o autoritarismo é um modelo a ser seguido e uma qualidade a ser exaltada. Por isso, eu acho que neste contexto, em que temos esse déficit democrático e um presidente com ímpetos autoritários, o jornalismo local tem uma oportunidade, talvez especial, de ser desenvolvido.

Além disso, o jornalismo local, neste ano de 2020, tem um oportunidade de reconectar a cidadania com o processo democrático. Acho que é uma função não só do jornalismo. A justiça eleitoral e grupos cidadãos têm muito essa função, mas o jornalismo tá no meio disso tudo. Aí acho que temos que refletir, enquanto profissionais de imprensa: no caso, que pauta a gente quer propor? Que pauta queremos ver emergir? Precisamos refletir sobre isso, em diálogo com a cidadania. Precisamos jogar luzes nos processos de decisão do poder público, Executivo e Legislativo. Este último, que, usualmente, é um poder com menos atenções no nível municipal. Ninguém quase cobre Câmara de Vereadores e tem muita coisa importante acontecendo lá! Uma cobertura que esclareça assuntos nem sempre abordados ajuda muito neste sentido.

Mescla: Qual a relação entre o jornalismo local e o jornalismo de solução?

Naira Hofmeister: Na verdade, o Jornalismo de Soluções não está vinculado, especificamente, a um formato de reportagem, por exemplo, TV, Rádio, Jornal ou Internet. Ele cabe em todos esses formatos e ele cabe, também, em todos os focos. Pode ser em jornalismo local ou jornalismo especializado. O jornalismo de soluções, na verdade, pode ser feito em qualquer plataforma. O que eu acho, que nesse caso que a gente tá falando de um contexto de eleições em 2020, o jornalismo de soluções pode auxiliar. Tenho a impressão que nessa caminhada de reconexão da cidadania com os seus processos e suas instâncias democráticas, o jornalismo de soluções tem muito a oferecer, porque uma grande característica do jornalismo de soluções é jogar luzes em cima do que pode dar certo, o que tá dando certo e das iniciativas estão sendo feitas, tanto do ponto de vista de iniciativas dos poderes – soluções que os poderes apresentem para os problemas – quanto soluções que a própria sociedade pode propor. Eu acredito muito nesta vertente. Principalmente, o jornalismo como uma maneira de olharmos mais para a nossa sociedade e menos para o “oficialismo”. Nesse sentido, o jornalismo de soluções é muito atrativo, pois pode ser capaz de mostrar ideias e saídas para grandes problemas. A gente tem que ter um problema que seja amplo e compartilhado por uma comunidade e uma solução que responda a esse problema e que tenha já evidências do seu sucesso. Que seja uma solução escalável, ou seja, que possa ser aplicada em outras instâncias, e claro, toda solução terá suas limitações, então, também nesse sentido, o jornalismo de soluções tem que ter essa responsabilidade de mostrar quais são os limites daquela ideia. neste contexto de 2020, o jornalismo de soluções pode realmente despertar e motivar a cidadania à acreditar de novo nessa coisa chamada democracia, que infelizmente, a gente tem perdido cada vez mais.

Mescla: 37 milhões de pessoas no Brasil não têm acesso ao jornalismo independente, ou seja, na sua cidade não possui nenhum veículo. Qual o impacto do jornalismo local em cima desse número?

Naira Hofmeister: Isso quer dizer que o nível mais elementar de informação, exatamente o nível onde a gente melhor consegue entender o que é viver em sociedade, que é no nível local, essas pessoas não estão tendo informação. Vamos fazer um exercício contrário. É muito difícil eu entender qual é a necessidade de ter uma democracia no Brasil, de ter um presidente eleito, que esse presidente respeite as prerrogativas do seu cargo, que esse presidente respeite os demais poderes, que os poderes atuem com independência, que o poder judiciários cumpra as suas tarefas, que o poder legislativo tenha, também, o seu espaço, que todos se respeitem e trabalhem em conjunto e que todos esses poderes respondam e entendam às demandas da sociedade, nacionalmente. É muito mais difícil entender esse sistema democrático nacionalmente, se ele não entende isso localmente. Se ele não tem um jornal que diga: “Meu amigo, é o seguinte, se tem um buraco na tua rua, isso é um problema coletivo e existe um poder público que deveria resolver este problema pra ti”. “Tu não tem que furar o pneu do teu carro toda vez que tu passa nesse buraco”. “O cadeirante não tem que desviar desse buraco para poder atravessar a rua”. Então, o jornalismo local tem essa função de apontar o buraco na rua e dizer: “Vizinhos, cobrem, isso aqui tem dotação orçamentária para isso, o orçamento da EPTC deste ano é de tantos bilhões, esse buraco não podia estar aqui”. Por que não está sendo feito? De quem que a cidadania tem que cobrar? O que está acontecendo? Se o poder Executivo não funciona, onde está a Câmara de Vereadores? Por que a Câmara de Vereadores não fez nada? Se é um problema recorrente, por que então a Justiça não está agindo para obrigar o poder público a solucionar o problema? É muito triste ver que um volume muito grande de brasileiros não têm acesso ao jornalismo local, porque isso dificulta a nossa tarefa de melhorar e aperfeiçoar a nossa democracia, né. É muito preocupante esse dado. Deveríamos ter muito mais veículos locais atuando no Brasil.


“Fizemos esta matéria mostrando que há respostas, que oferecem dados para que os governantes possam tomar decisões”, comenta Naira, sobre a importância da reportagem sobre as pesquisas realizadas pela UFPel (Foto: Reprodução Site)

Mescla: Naira, tu poderia falar um pouco sobre o Grupo Matinal, no caso, como o projeto aborda e trabalha essas questões do jornalismo local e do jornalismo de soluções, citando como o exemplo, a matéria sobre o “Kit-Covid”?

Naira Hofmeister: O Grupo Matinal é um conjunto de veículos, criado por jornalistas. Somos todos os participantes, sócios e desenvolvedores desses veículos. É um grupo recente, ele se formou no final do ano passado (2019), quando a gente criou a Revista Parêntese, que é uma revista de “ideias” que circula no final de semana. E essa revista (Parêntese) se uniu à Newsletter Matinal, que era uma newsletter que já existia desde o início de 2019, e, também, ao site do Roger Lerina, que fala sobre cultura e entretenimento. Aí, achamos que era uma boa nos juntarmos e desenvolvermos uma plataforma comum. É um grupo que se financia através do apoio dos leitores. Nossa receita é, basicamente, de assinaturas dos leitores. Aí, neste caso, voltamos àquela questão da cidadania, porque eu acho que um dos pilares da democracia é a imprensa. Acho importante que os cidadãos estejam conscientes e apoiem os seus jornais e os seus jornalistas, a sua imprensa, seja o Matinal ou qualquer outro veículo que a pessoa queira assinar. A gente tem feito um trabalho, modestamente falando, que eu acho excepcional. Somos uma redação muito pequena, mas temos conseguido jogar luzes sobre questões, normalmente, que não ganham a atenção dos demais veículos de  imprensa. Fizemos investigações muito potentes. Faz algumas semanas, inclusive, levamos um secretário municipal a pedir demissão, porque denunciamos que ele estava contratando um instituto, presidido pelo próprio filho, para gerenciar albergues no município de Porto Alegre. Neste tema de jornalismo de soluções temos feito algumas matérias, também. Falando de peito aberto, como uma jornalista que não tinha tido uma experiência anterior relevante nesse campo e nessa abordagem do jornalismo de soluções, ele é um pouco difícil de se fazer. Sempre fui repórter investigativa, repórter que fuça e mostra um problema, e o jornalismo de soluções é o oposto disso. A ideia é mostrar que respostas temos para àqueles problemas que encontramos. Isso não faz dele um jornalismo “bonzinho”, um jornalismo feliz, como pode, talvez, parecer. O jornalismo de soluções é muito crítico, porque ele, justamente, precisa mostrar para a sociedade que as soluções existem e que, bom, elas podem ter limitações, mas elas existem. Então, o Grupo Matinal tem feito algumas matérias nesse sentido. Nós ganhamos uma bolsa da Fundação Gabriel García Márquez de Jornalismo, que é uma instituição da Colômbia em conjunto com a Solutions Journalism Network, que é uma rede de jornalistas de Soluções, cuja sede é nos Estados Unidos. Ganhamos uma bolsa dessas duas entidades para desenvolver uma reportagem com foco em soluções para a crise do Coronavírus. No nosso caso, foi a reportagem que escrevi sobre a pesquisa da Universidade Federal de Pelotas, que é a maior pesquisa do mundo. É uma pesquisa que eles fazem nacionalmente. Existem duas pesquisas da Universidade de Pelotas: uma dentro do Rio Grande do Sul e outra que é feita nacionalmente, que teve três etapas financiadas pelo Ministério da Saúde e agora vão ter mais três financiadas por instituições privadas. Então fizemos esta matéria mostrando que há respostas, nesse caso, é uma resposta, talvez, até pequena se tu for pensar o tamanho do problema, uma crise desse tamanho, mas é uma resposta importante, que oferece dados para que os governantes possam tomar decisões. Essa não é a única matéria que a gente fez, tu até mencionou aqui a matéria do Kit-Covid, mas essa eu acho que não se encaixa como um jornalismo de soluções. É até ao contrário né, é uma matéria que mostra uma falsa solução e tenta esclarecer à população sobre como é enganosa essa ideia de que exista o tratamento precoce para o Coronavírus. Mesmo o tratamento profilático, que tem sido mencionado aqui no Rio Grande do Sul, fazendo com que, até, o Ministério Público obrigasse alguns prefeitos a disponibilizarem medicamentos, embora eles não tenham comprovação científica. Em resumo, no Matinal. a gente tem apostado por essa vertente do jornalismo de soluções. Fizemos matérias, por exemplo, lá no início da pandemia, sobre como que a cidade de Rio Grande tinha conseguido conter o vírus. Agora, infelizmente, Rio Grande tem uma estatística bem triste. Procuramos trazer exemplos que sirvam de inspiração para outras comunidades. Acho que, nesse aspecto, é um trabalho de jornalismo relevante, pois traz ideias e gera um debate cidadão muito bacana.

Mescla: Poderia falar um pouco mais sobre a experiência com a bolsa da Fundación Gabo e da Solutions Journalism Network, relacionando com o jornalismo local e jornalismo de soluções?

Naira Hofmeister: Quando eu propus a pauta para a Fundación Gabo e para a Solutions Journalism Network, eu pensei comigo um checklist para fazer um jornalismo de soluções. Precisava ser um problema compartilhado, por uma ou várias comunidades e uma solução a esse problema, que tivesse evidências de que funcionasse e que fosse replicável. Então, neste caso, o problema já estava dado, pois o curso era voltado para soluções e saída para a crise do Coronavírus, ou seja, as pautas tinham que abordar essas saídas e soluções. Mas no meu caso, a solução era a pesquisa nacional da UFPel, sobre coronavírus. Então, é importante isso ficar claro, pois quando tu vai escrever a  matéria, precisa focar na solução e, também, sempre manter no horizonte o problema. E o que eu queria salientar, é o fato de que durante a apuração da matéria eu me dei conta de que o problema não era apenas a falta de informação sobre o coronavírus. Ficou muito evidente, durante a apuração, pelas repercussões que foram tendo depois que eu tinha sugerido a minha matéria, que o problema na verdade era o Governo Federal, o governo Bolsonaro. Percebi que o problema era como fazer ciência dentro de um país, cujo principal representante é um cara que age totalmente contra às evidências científicas. Isso me ajudou a clarear muito a minha redação porque eu consegui focar nas respostas e isso tem a ver com a história das respostas da sociedade e de como estimular a cidadania. Então me perguntei, se o governo federal não dá suporte aos seus pesquisadores para que eles cheguem nas cidades e possam aplicar o questionário de uma maneira segura, como que os pesquisadores respondiam a isso? Eles criaram uma rede própria de apoio, contando com apoio da igreja, dos procuradores federais, enfim, uma articulação para dar conta de suprir essa lacuna que o governo não estava sendo capaz de dar. Bom, outro problema, o Governo Federal não irá financiar mais a pesquisa. Então, como esses pesquisadores respondem a isso? Eles vão buscar dinheiro na iniciativa privada. Mais outro problema, o governo federal ignora os dados que os pesquisadores encontraram, no caso, desconfia dos dados. Como que os pesquisadores respondem? Eles vão se aliar aos governos estaduais e aos municípios para oferecer dados a gestores. Então, eu acho que esse exemplo ilustra muito a história de como o jornalismo de soluções pode fomentar e mostrar que existem redes cidadãs diferentes. Nós do Matinal acreditamos nesse tipo de coisa. Acreditamos que o jornalismo está aqui a serviço da cidadania e que uma coalizão entre o jornalismo, ciência e cidadania é a metade de um caminho andado. É um rumo. É isso que nos dá uma perspectiva de futuro.

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