
Eneida Josefina Bazán tem uma grande família: cinco filhos, quatro netos e cinco irmãos. Na rotina diária, levava os filhos na escola pela manhã e, à tarde, dividia-se entre os trabalhos de manicure, cabelereira e confeiteira. Morava em Barcelona, cidade litorânea da Venezuela, e tinha como companhia constante o mar azul do Caribe. Hoje, o mar, a família e o trabalho são lembranças e saudades da refugiada que mora no abrigo da ONU em Esteio, no Rio Grande do Sul.
A crise foi se incorporando aos poucos na vida da família de Eneida. A comida, que antes era abundante nas festas e jantares, foi diminuindo. As filas para o mercado se tornaram maiores, e os preços ficaram exorbitantes. O frango, refeição constante na família, chegou a custar um milhão de bolívares soberanos (cerca de dez mil reais) e um quilo de sardinha cerca de 400 mil (cerca de quatro mil reais). “Em Barcelona tudo é caro ou não há comida. O comércio está todo fechado. Tudo o que tem são ambulantes”, conta Eneida.
As mercadorias chegavam somente no início do mês, assim, os moradores dormiam na rua para chegar a tempo de comprar os produtos escassos. Nas filas, a violência marcava presença e as brigas por alimentos eram comuns. “Se eu comia hoje, não havia para todos os meus filhos. Se eu dava comida para eles, eu não comia. Não comia para mandar para minha mãe”, relata Eneida.
A situação se tornou insuportável, e a ideia de migrar tomou forma para a venezuelana. Quem incentivou a vinda dela para o Brasil foi uma sobrinha que estava em Boa Vista, Roraima. Em uma visita à Venezuela, vendo as dificuldades que a família passava, questionou a tia. “Vamos. O que faz aqui? Aqui não se pode viver. Vamos e depois buscamos as crianças. Lá terá emprego”. A decisão foi repentina. Eneida disse à sua mãe, em uma noite, que estaria partindo logo. “Minha mãe disse que eu estava louca, que era perigoso, perguntou se eu não tinha ouvido o que as pessoas falavam. Eu disse que sozinha não tinha problema, lutava, mas com as crianças não poderia”, lembra.

O sacrifício para ajudar quem ficou
Em Porto La Cruz, Eneida embarcou cheia de esperanças para um futuro melhor para ela e a família. A viagem, entretanto, foi demorada e cheia de percalços. O pior deles foi o assalto que Eneida sofreu em Bolívar, ainda na Venezuela. Ao chegar tarde no terminal de ônibus, ela e a sobrinha procuravam por um lugar para comer quando dois homens em uma moto as pararam e levaram todo o dinheiro que tinham para chegar ao Brasil. Por sorte, a refugiada conseguiu uma carona até a fronteira, com uma pessoa que também ajudou com dinheiro, e conseguiu ingressar no Brasil.
As coisas não melhoraram logo na chegada a Roraima. Eneida entrou no país apenas dois dias após os ataques dos brasileiros aos imigrantes venezuelanos. Barracas, roupas e pertences haviam sido queimados por grupos xenofóbicos no final de agosto. As cinzas, que ainda estavam na cidade, eram a prova do preconceito e eram uma prévia dos meses difíceis que viriam a seguir. “Quando cheguei em Pacaraima e vi tudo aquilo que aconteceu, eu chorava e me perguntava: Por que? Por que isso se somos seres humanos iguais? Por que temos que passar por essa situação?”, conta.
Em um novo país, sem moradia e com pouco dinheiro, Eneida teve que morar nas ruas de Pacaraima durante dois meses. “A polícia nos corria, os militares eram horríveis, até mesmo os brasileiros”, lembra. Com um grupo de venezuelanos refugiados, ela passava os dias na mata, preparava as refeições em latas no relento e tomava banho em uma lagoa. “O sacrifício foi pesado, mas eu queria trabalhar para buscar a minha família”, diz.
“Trabalhei em Pacaraima por minha própria conta. Comprava cigarros venezuelanos em Santa Elena e vendia”, conta. Dias depois, uma empresa abriu as portas para os refugiados dormirem no horário em que não havia funcionários. Às 5h, porém, tinha que juntar os pertences e sair do local. Apesar das dificuldades, Eneida se manteve motivada, e a lembrança da família não a deixava desistir. “Não pensei em voltar para a Venezuela, pois iria viver o mesmo. Rodei, passei sacrifício, mas aqui estou bem”, conclui.

Famílias se formam no Brasil
Nesse período, Eneida conheceu Kenia, sua irmã de coração. As duas venezuelanas encontraram semelhanças nas histórias de vida e perceberam que juntas poderiam se proteger e ajudar uma a outra. A amizade se fortaleceu e Eneida deixou o grande grupo de venezuelanos para se juntar a Kenia e seu irmão para traçar uma nova história.
A esperança reascendeu nos olhos das duas quando ouviram falar de uma viagem para um abrigo no Rio Grande do Sul. Movidas pelo sentimento de companheirismo, as amigas não se deixaram abalar quando souberam que a viagem seria apenas para famílias e Eneida não poderia embarcar. A solução foi se juntar a outro venezuelano que estava na cidade e viajar junto a ele, como se fossem casados. “Quando chegamos aqui, avisamos que não estávamos juntos. Passaram ele para o abrigo dos homens e me deixaram aqui”, explica Eneida enquanto ri timidamente.
Ao sair do avião, elas não sabiam onde estavam, mas tinham a certeza que uma nova vida se iniciava ali. No abrigo em Esteio, se emocionaram ao ver camas depois e ter um teto depois de tanto tempo sem esses confortos. Na casa, Eneida divide com sua irmã de coração as tarefas do dia a dia, como cozinhar e limpar a casa e ajudar as outras mulheres que tem filhos. A busca pelo emprego segue, mas as diárias que faz em algumas casas e no hotel que fica próximo ao abrigo já a trouxeram dinheiro para enviar a família. “Os que podem migrar, migram para ajudar os outros”, diz convicta.

Saudade de um lado, gratidão do outro
A saudade é constante e a tecnologia é a forma de amenizá-la. Pela tela do celular, em aplicativos como o WhatsApp, Eneida mantém contato quase diário com a família. Por mais que a internet na Venezuela seja precária, ainda permite que ela fale com os filhos e possa estar integrada ao dia a dia dos familiares. O telefone, que hoje representa a única ligação com a terra deixada para trás, foi obtido com a força conjunta de amigos. Entretanto, as notícias que passam pela rede não são boas. Ela conta que os filhos, durante as conversas, a dizem que “a Venezuela está horrível”.
O sentimento e a emoção são vistos em cada gesto da venezuelana. A saudade atravessa a fala e se transforma em lágrimas quando ela conta que sente falta de ajudar e estar presente no dia a dia dos filhos e netos. “Por uma parte me sinto mais tranquila porque sei que eles estão bem”, ressalta. A saudade contrasta com a gratidão com o povo brasileiro. O carinho que recebeu e ainda recebe é uma das marcas que carrega nessa nova jornada. “Existe aqui uma coisa distinta, que em meu país não havia visto, nada como o carinho. Eu sou muito agradecida”.