Irmãs de coração: Parte I
“Kenia Brito: universitária luta para trazer a filha ao Brasil”

Kenia Maybeht Echarry Brito dividia seu tempo entre o emprego em uma padaria, a faculdade de Geografia e História na Universidad Pedagógica Experimental Libertador, la UPEL, e os cuidados com a filha de sete anos. A jovem venezuelana de 29 anos viu a história do país onde nasceu e cresceu tomar rumos preocupantes nos últimos anos, enquanto a rotina diária seguia.

Na faculdade, rodas de debate sobre a situação do país viraram ação em forma de manifestações políticas das quais ela participava. A situação não mudava, e os protestos logo tornaram-se violentos. Gás lacrimogênio, pedras e balas começaram a se tornar parte do cenário.

A violência se alastrava no mesmo ritmo da fome. Filas em mercados e padarias e a escassez de produtos básicos se incorporaram à rotina dos venezuelanos. Perigosas, as ruas se tornaram territórios de milícias e grupos opostos que lutavam sem medo de quem iriam ferir. Foi em uma dessas brigas que Kenia perdeu o marido, assassinado no trabalho como policial enquanto trabalhava em um dos confrontos. A vida em Miranda, cidade próxima à capital Caracas, havia mudado intensamente e Kenia, sozinha com a filha, viu que ela deveria mudar também.

A fome não espera

A estudante de História e Geografia afirma que há tempos as coisas não estavam boas para seu povo: “Tudo começou com Chávez”. A falta de alimentos e a inflação alta criaram uma situação inconcebível, diz. “Eu trabalhava das 6h30 às 19h e o dinheiro não dava para comprar um quilo de arroz na semana”, conta Kenia. A troca da moeda, de bolívar forte para bolívar soberano, só serviu para as pessoas “não se darem conta dos preços monstruosos”, segundo ela.

A fome, somada aos preços altos e à perseguição política à oposição, levaram Kenia a tomar uma decisão: migrar.  Assim, arrumou as malas, deixou a filha sob os cuidados da mãe – que ainda trabalha para o governo – e saiu rumo ao desconhecido junto a um irmão.

A Colômbia não era uma opção para a venezuelana que considerava o lugar “muito difícil”. Então, o Brasil surgiu como destino final da jornada. Kenia e o irmão chegaram em Pacaraima no dia 30 de agosto de 2018. A cidade que marca a divisa Brasil-Venezuela também se mostrou um local de caos. Diversos imigrantes dormiam nas ruas, passavam dias sentados na mata e dependiam de ajuda de uma igreja para se alimentarem diariamente.

Kenia em entrevista com o Mescla, em dezembro de 2018, em um dos abrigos para os venezuelanos de Esteio. (Foto: Giulia Godoy)

Uma nova família no Brasil

Foi em um desses dias de marasmos e incertezas nas ruas de Pacaraima que Kenia encontrou uma irmã de coração, Eneida. Ao se reconhecerem como conterrâneas que passavam pela mesma situação, viram que juntas poderiam se ajudar e se proteger. Logo, se desprenderam do grupo maior e começaram a traçar a sua própria história. O apoio mútuo entre as duas é percebido na forma como falam uma da outra e estão unidas para realizar todas as tarefas, formando uma verdadeira relação de família.

 Em Pacaraima, escutaram sobre uma lista da ONU para levar famílias refugiadas a um abrigo. A esperança pela condição de moradia segura foi afetada por uma notícia:  só famílias seriam levadas na viagem. Kenia estava com seu irmão em Pacaraima, por isso já estava na lista para embarcar. Eneida, porém, estava sozinha. As duas irmãs de coração não se separaram graças à ideia de Eneida de levar outro conhecido venezuelano como seu marido. Na chegada em Esteio, o “casal de mentirinha” se separou, explicando a situação, e Eneida ficou no mesmo abrigo de Kenia.

O Rio Grande do Sul marcou o fim da jornada e o início de um novo ciclo. A chegada na nova casa foi cheia de novidades, afinal, as famílias não sabiam para onde estavam indo. “Sabíamos que era longe, mas não tão longe como realmente era. Quando chegamos aqui e saímos do avião, perguntamos quanto tempo havia passado. Foi quando nos damos conta que estava bem longe”, conta Kenia rindo. Sobre a rotina no abrigo, ela diz que “às vezes, é louco”, principalmente quando o banheiro e a cozinha “colapsam” de tanta gente.

Eneida, na esquerda, e Kenia. (Foto: Kellen Dalbosco)

O sonho do reencontro

Hoje, as duas compartilham o teto e a comida com dezenas de refugiados com histórias semelhantes na cidade de Esteio, no Rio Grande do Sul. A amizade, entretanto, está mais resistente do que nunca. O colar igual que as duas usam, adquirido na nova fase de vida, é a prova da relação forte que surgiu em meio às dificuldades para sobreviver em um país estranho.

O novo ciclo trouxe novos sonhos. Um dos objetivos de Kenia é morar junto com a irmã de coração, Eneida. Para o futuro, ela deseja continuar no Brasil e arranjar um bom emprego, que a permita enviar dinheiro para a família na Venezuela. A refugiada também sonha com o momento em que poderá resgatar a filha. As questões legais a impedem de entrar no país para buscá-la e impedem seus pais de trazer a menina para o Brasil. “Meu pai já está em contato com um advogado para ter os documentos de guarda”, conta Kenia.

O futuro agora é formado pelas esperanças de trabalho, moradia e uma vida tranquila fora das paredes desbotadas do abrigo em Esteio.

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