
Em uma tarde de calor sufocante em Esteio (RS), Marcos Daniel Carrasquel passa pela porta do abrigo para refugiados venezuelanos da cidade. Em uma mão, carrega uma pasta contendo uma série de documentos. Na outra, um celular antigo.
Os pingos de suor na testa morena eram inevitáveis e o obrigavam a limpar o rosto com frequência. Ele observava o pátio externo do local por uma janela de aparência enferrujada. Cada palavra, assim como o olhar, desencadeava memórias em Marcos, que começava a contar em detalhes o caminho que percorreu para fugir de seu país.
Em uma casa erguida com paredes de zinco, “como as daquele telhado ali”, referindo-se a um puxadinho feito no pátio do abrigo, Marcos foi apresentado ao mundo, em 1984. Em meio a nove irmãos, ele cresceu e viveu na Paróquia Sabanita, zona central do município de Heres, cidade com quase 300 mil habitantes, na Venezuela. O espanhol nativo se mistura com as poucas palavras que arrisca no português. Ele conta que na manhã que antecedeu a conversa, ao trocar mensagens com a irmã, que permanece no país vizinho, ele chorou.
Aos 34 anos, Marcos Daniel carrega um diploma de advogado, inúmeros cargos de confiança ocupados no governo de Nicolás Maduro e mais cicatrizes do que consegue contar. Aos sete anos, sofreu um acidente de avião monomotor quando viajava com os pais até o minério de onde provinha o sustento da família. A descrição do episódio lembra o roteiro de um filme de ação, no qual a família machucada consegue sair do local pouco antes de uma explosão. Mas a história de Marcos, assim como as marcas em seu corpo, não são ficção. No acidente, ele ganhou cicatrizes, o pai teve cortes severos e a mãe, queimaduras.
Ao finalizar o ensino básico, ele saiu do local que conhecia por casa e foi estudar na capital do país, Caracas, distante 600 quilômetros de sua família. Ingressou na Universidad Santa Maria, uma das melhores da Venezuela – e mais caras também. Para pagar por os estudos, trabalhou em uma padaria. Passando de setor em setor, fez faxina, ajudou os padeiros a assar o pão, fritou pastéis e atendeu aos clientes no balcão. Acompanhou de perto as crises pelas quais seu país passou. Primeiro sumiram os sacos de farinha, depois foram-se os clientes. Ele vivenciou a economia sendo restaurada e ficando frágil novamente, conforme os governos e as políticas de Hugo Chávez e Nicolas Maduro mudavam.
“Quando você tem uma meta de vida e aponta para ela com muita força, você chega”, sentencia. Cada frase dita por ele parece deslocar uma série de lembranças. A graduação em direito é seu orgulho. Talvez pelos anos dedicados aos estudos e ao pagamento deles, talvez por ser o único, entre os irmãos, a ter um diploma, ou até por cumprir o que prometeu à mãe no dia da formatura: ela nunca mais teria que trabalhar, pois ele proveria o sustento da matriarca.
Esse é um ponto dolorido na vida de Marcos e faz com que seus olhos, relutantemente, se encham de lágrimas. O celular barato que traz nas mãos serve de instrumento para ilustrar, com fotos, o que conta. Na tela, sua mãe é uma senhora esguia, com cabelos brancos e braços finos. Uma imagem distinta da mulher cheia de vida descrita pelo filho. Aos 51 anos, ela sofre com um transtorno de ansiedade e o dinheiro enviado por Marcos mal serve para uma caixa de remédios e três sacolas de comida. Os reais convertidos em bolívares soberanos resultam em pouco mais de três salários mínimos na Venezuela.

“Eram eles ou eu”
O diploma em Direito foi somente um dos passos grandiosos de Marcos. Na pasta que carrega embaixo do braço, uma série de documentos relevam um novo parágrafo em sua história, um dos mais decisivos. No papel, um comprovante atesta que ele não é fichado na polícia. O passado limpo alivia ele, que aponta para o seu nome no documento, como se o sinal desse certeza de que se trata dele.
Após sua formação, passou a trabalhar em diferentes órgãos do governo venezuelano, como fiscal de renda de programas sociais. Nos anos que antecederam a vinda para o Brasil, ele ocupou o cargo de consultor jurídico do estado de Bolívar. Lá, com a função de acompanhar, verificar e liberar a papelada de obras estatais, ele detectou um problema. Obras superfaturadas, empresas fantasmas e até o nome de seu próprio chefe como um dos beneficiários dos esquemas de corrupção.
“Eram ele ou eu”, revela ao contar que o início de seu inferno foi recusar a oferta, do alto escalão do Estado, que pedia para ele assumir a culpa dos esquemas. Por isso os documentos que carrega dizem tanto sobre ele. A folha de antecedentes criminais mostra que não somente ele não assumiu a culpa como encarou a pior das consequências: teve que fugir para não ser morto.
A fronteira com o Brasil foi a opção. De carona com próprios funcionários do governo, amigos de Marcos, ele atravessou a divisa entre Santa Elena do Uairén, na Venezuela, com Pacaraima, no Brasil – um percurso de 17 quilômetros. Sua família também fez as malas e embarcou, primeiramente, para a Colômbia. Ele conta que seus familiares voltaram para a República Bolivariana da Venezuela, mas tem receio de revelar suas localizações, já que teme pela integridade física deles.

Revolução dentro da revolução
Na Venezuela, a liberdade de expressão foi o primeiro dos direitos violados a ser condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Por lá, denunciar os abusos do governo não são uma opção para a população ou até mesmo para a imprensa. A realidade do país é constantemente retratada por veículos estrangeiros, que entram no país para produzir reportagens e documentários. “Conhece ‘A revolução não será televisionada?’” – “Não preciso de documentários, eu vivi, eu estava lá”.
Marcos trabalhava para o governo autoritário de Maduro, o que significa que reclamações não eram bem-vindas no ambiente de trabalho. A solução encontrada pelo advogado foi amarrar uma camiseta no rosto e sair pelas ruas para protestar com sua identidade velada. Ao seu lado, lutaram colegas de trabalho e dos tempos da graduação, quando participou de organizações estudantis. Quarenta daqueles que já estiveram nas ruas, dividindo as lutas com ele, caíram. A expressão é uma alusão ao momento em que os protestantes eram atingidos pelas forças armadas do país, que reprimiam os protestos.
Refugiados em manutenção
Marcos Daniel Carrasquel Carrasquel entrou no Brasil pela fronteira com Roraima, mas seu destino foi Manaus. Na capital do Estado do Amazonas, ele trabalhou vendendo frutas. As histórias que permearam sua estadia na cidade são repletas de romance, dificuldades de comunicação e trabalho. Marcos divide as emoções entre o riso tímido e os olhos atentos ao contar sobre seus primeiros meses no país.
Isso foi em 2016, mas o documento como solicitante de refúgio data de julho de 2017. Ele admite não ter pedido a documentação logo em sua entrada por medo de ser rastreado pelo governo venezuelano.
Foi para Boa Vista, conseguiu um emprego em um restaurante e ajuda de amigos para o aluguel de um apartamento. Marcos viu a onda de refugiados chegando à capital de Roraima e a situação da cidade ficando precária. Ele conta que quando veio ao Brasil, no ano anterior, viu as pessoas se solidarizando e recebendo os venezuelanos com boa vontade. Doze meses depois, a situação mudou. Onde havia acolhida, ele encontrava desdenho e falta de oportunidades.
Perdeu o emprego e a casa. Mudou-se para um barraco improvisado com papelão na Praça Simon Bolívar, no centro de Boa Vista. O local abriga centenas de venezuelanos que chegam ao país através da rota Santa Elena do Uairén – Paracaima – Boa Vista. Com o número de refugiados vindos do país vizinho e a falta de comida e de trabalho aumentando na cidade, a Prefeitura Municipal decidiu tampar o sol com a peneira e, ao redor da praça, colocou um tapume com os dizeres “em manutenção”.
Antes de participar do plano de interiorização e viajar para Esteio, na região metropolitana de Porto Alegre, passou por um abrigo de refugiados, locado em um ginásio antigo na cidade de Roraima. Exclusivo para homens, havia muito trabalho a ser feito no local. O advogado foi contratado pelo governo local para exercer funções de limpeza. O diploma de Marcos não vale no Brasil, tão pouco sua especialização e experiência em Direito Público Internacional. Em Esteio, ele trabalha descarregando caminhões. “Eu estou disposto a trabalhar no que seja”, admite.
Assim como a palavra estampada no tapume que cobria a praça em Roraima, a vida de Marcos também está em manutenção. E, mesmo se viesse com um manual, o advogado, como todos os outros refugiados que saíram da Venezuela, não encontraria uma página que os ensinasse a agir em um momento como o qual seu país atravessa. A ele, resta um desejo sincero e que parece longínquo: regressar à família em sua terra natal. “Se o governo de Maduro cai hoje, amanhã junto as minhas coisas e volto para lá”.
