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#direito #ética #jornalismo #the intercept
Em que ética a cobertura da Vaza Jato se baseia?
"O Mescla ouviu pesquisadores de diferentes universidades para entender os valores jornalísticos envolvidos na publicação das reportagens lançadas a partir do The Intercept Brasil "
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A Vaza Jato ganhou um novo capítulo nesta sexta-feira (5/7) com a entrada da Veja na apuração das mensagens trocadas pelos procuradores da Lava Jato e o ministro Sérgio Moro. Segundo a reportagem da revista, foram analisadas 649.551 mensagens, que revelam o trabalho em conjunto do então juiz com o procurador Deltan Dallagnol. Consta em um dos trechos: “Moro cobra Dallagnol sobre a data em que o Ministério Público Federal se manifestará a respeito de um habeas corpus impetrado pela Odebrecht. Deltan diz que pretende fazê-lo no dia seguinte”.

Print da reportagem da Veja em 5 de julho.

A atuação do então juiz viola o artigo 254 do Código de Processo Penal, no qual fica proibido o aconselhamento ou predileção por uma das partes. Essa violação pode fazer com que os atos de Moro como juiz sejam revistos, não pela defesa ou condenação de alguém, mas pelo direito de todos os cidadãos de receberem um julgamento justo.

O ingresso de outros veículos na cobertura iniciou no final de junho, quando a Folha de S. Paulo divulgou editorial e matérias com base nas mensagens. As informações, que vem de fonte anônima, somam um montante considerável, e já se esperava serem necessárias parcerias para averiguar e distribuir os dados de forma eficaz. No mesmo dia que a Folha entregou a primeira matéria, o The Intercept Brasil explicou as decisões sobre o trabalho em conjunto. Segundo os editores, essa é uma forma de acelerar a divulgação e incrementar as apurações sobre as informações obtidas. Diz um trecho da nota:

“O papel de uma imprensa livre em uma democracia é garantir que aqueles que exercem o maior poder o façam apenas com transparência, porque todos os humanos inevitavelmente abusam do poder quando lhes é permitido usá-lo no escuro.”

Os jornalistas da Folha designados para o trabalho disseram não ter encontrado sinais de adulteração do material. Uma das estratégias utilizadas foi cruzar trechos de conversas que os próprios repórteres tiveram com os procuradores da Lava Jato.

Rogério Christofoletti – Acervo pessoal.

Para Rogério Christofoletti, doutor em Ciências da Comunicação e professor do Departamento de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina, esse é um momento de otimismo: “A entrada de outros meios e profissionais pode ajudar a sociedade a compreender melhor o que temos diante de nós”, disse o pesquisador. Para ele, como a quantidade de material é grande, a ajuda de outros jornais, além da agilização do processo, parte da desconfiança deve diminuir.

Felipe Boff – Acervo pessoal.

A parceria com outros profissionais, como Reinaldo Azevedo na rádio Band News, contribui para a verificação dos dados, como concorda o professor do curso de Jornalismo da Unisinos Felipe Boff, mestre em Ciências da Comunicação: “Reforça, na minha opinião, o caráter de interesse público da revelação das mensagens secretas entre Moro e a força-tarefa da Lava Jato. Assim, vejo a atitude colaborativa do The Intercept Brasil como uma iniciativa muito bem-vinda no campo do jornalismo.”

Mais importante do que a fonte, é debater o conteúdo entregue

O The Intercept Brasil tornou-se alvo das críticas dos envolvidos nas conversas vazadas e colunistas da mídia tradicional, especialmente das organizações Globo. Desde a primeira reportagem, as críticas ao material seguem voltadas principalmente para a forma como essas informações foram obtidas e não sobre o teor das conversas. Todo esse debate reforça os questionamentos sobre o papel do jornalismo e das investigações envolvendo o poder. Esse foi também o tema do podcast Conversa Humanista, que contou com a presença da professora de Ética da Faculdade de Jornalismo da UFRGS Virgínia Fonseca. Para a pesquisadora, se está diante de valores em conflito: o direito à privacidade e ao interesse público. “Do ponto de vista do jornalismo, o que importa – porque essa é a função precípua do jornalismo – é dar conhecimento ao público da ação de agentes públicos que estavam agindo em desacordo com que se espera desses agentes públicos. E pessoas públicas têm menos direito à privacidade do que pessoas privadas”, destaca Virgínia.

Maria Clara Bitencourt. Foto Bruno Alencastro.

A pesquisadora Maria Clara Bitencourt, que tem pós-doutorado em Ciências da Comunicação, acredita que uma abordagem que tem dificultado a compreensão real do problema é o fato das mensagens serem supostamente produto de hackers, o que remete a uma prática criminosa. “Na concepção original, o hacker não visa destruir nem roubar, apenas tornar livre o acesso à informação, fazer com que as pessoas saibam utilizar a tecnologia para resistir à elite dominante”, explica Maria Clara, que é professora no Programa de Pós-graduação nos cursos da Escola da Indústria Criativa da Unisinos.

“O importante é debater o conteúdo que a fonte entrega, seja ela um hacker, um programa de computador ou até mesmo uma criança. Casos importantes podem ser resolvidos por conta de informações entregues por fontes que jamais foram creditadas. Para isso, existem programas de proteção à testemunha, por exemplo”, diz a pesquisadora.

Importante dizer que o The Intercept Brasil não confirma que as informações tenham sido obtidas por um hacker.

O cenário político polarizado contribui para que as opiniões sejam extremas, segundo Maria Clara. Haja vista as manifestações pró-Moro. Ela entende que, até o momento, a publicação não infringiu nenhuma lei. “Informações de interesse público são informações cujo conteúdo é de interesse da população, ou seja, devem ser de livre acesso. Esse tipo de conteúdo é diferente de mensagens de cunho pessoal”, explica.

No caso das matérias investigativas do The Intercept Brasil, há interesse da população, porque se trata de um processo jurídico que envolve atores públicos, que refletem a norma jurídica e influenciam social e politicamente os debates. “Todas as informações divulgadas, até o momento, seguem uma política editorial que vem trabalhando com conteúdos enviados por uma fonte, separando o que é de interesse público e o que não é”, explica a professora.

Organização de jornalistas se posiciona a favor das reportagens

A Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) emitiu uma nota no site oficial, dia 19 de junho, logo após os ataques ao The Intercept Brasil, em especial ao jornalista Glenn Greenwald. Na nota, reitera que os jornais têm o direito e o dever de proteger as identidades das fontes, mas não são responsáveis pela forma como as mesmas obtêm as informações.

“A Abraji manifesta solidariedade a Glenn Greenwald e repudia os ataques direcionados a ele, à sua família e a seus colegas do The Intercept Brasil, especialmente os que partem de agentes públicos. Tentativas de intimidar e silenciar um veículo são ações típicas de contextos autoritários e não podem ser tolerados na democracia que rege o país”, diz o texto.

O tema repercutiu no maior encontro de jornalismo do Brasil, o 14º Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo, promovido pela Abraji. Leandro Demori, editor do The Intercept Brasil, esteve presente no congresso e debateu com os jornalistas presentes temas como os desdobramentos das mensagens.

Leandro Demori – Foto por Gabriela Carvalho

No decorrer do evento, Demori já havia anunciado a nova parceria com a Veja e que faria reportagens pontuais. 

Para Rogério Christofoletti, que também é um dos fundadores do Objethos – Observatório da Ética Jornalística, o peso das informações é relevante o suficiente para ser de maior interesse que a identidade da fonte. Se for comprovado que houve crime no modo como as mensagens foram obtidas, então que os envolvidos sejam julgados em um processo limpo, mas esse ponto não deve tomar o lugar de importância do conteúdo das informações.

Cristofoletti considera uma questão ética importante o fato do veículo estar excluindo da cobertura as mensagens de caráter particular. “Os vazamentos que foram publicados até agora contribuem para o entendimento de que alguns movimentos da operação Lava Jato não foram republicanos e seguiram claros interesses político-partidários”, avalia.

De qualquer modo, houve invasão de privacidade

O professor do Programa de Pós-graduação em Direito da Unisinos Lenio Streck, pós-doutor em Direito, conversou com o Mescla sobre sua visão legal a respeito do caso.

Lenio Streck – Reprodução.

“O jornalismo lida com isso de um modo diferente da Justiça. Jornalismo publica quando há interesse público. Se houver consequências penais, o jornalista pode responder, mas a notícia já está dada. E aí vem a questão: notícia divulgada não se apaga, e as consequências jurídicas disso podem anular processos. Ou inocentar pessoas”, explica Streck.

Segundo o professor, é preciso pensar no vazamento de informações de duas formas diferentes: uso como provas ou uso como informações públicas. Legalmente, se for confirmado o hackeamento, as mensagens não poderão ser usadas como provas contra os envolvidos. O que resta é a consequência política.

“De qualquer modo, houve invasão de privacidade, mas a resposta passa pelo uso dos diálogos. Não servem para condenar ninguém, mas servem para anular o processo. Digamos assim: um processo sobre corrupção foi corrompido pela ausência de imparcialidade”, diz Streck. Ou seja, as mensagens não podem ser usadas como provas para condenar ou inocentar nenhum dos envolvidos, mas tiram a legitimidade dos processos.


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